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As questões aqui colocadas são vitais para o entendimento lúcido de muitas das práticas artísticas mais importantes da contemporaneidade.
Quando lançamos a ideia desta colecção de cadernos, em mais uma colaboração frutuosa e necessária do Doutoramento em Artes Plásticas com o Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade (I2ADS), existiram dois pensamentos que, desde logo, povoaram o nosso projecto: antes de mais, o corporizar de uma possibilidade, quase responsabilidade, que ambos os organismos têm: a sua contribuição para a discussão e divulgação de assuntos importantes do seu território. Estar, de uma vez por todas, sintonizados com o nosso tempo e com as suas questões fundamentais e, acrescente-se, produzir materiais que, pela sua importância, afirmem o seu inequívoco interesse, não só dentro das paredes da Faculdade, mas, também, no meio a que pertencemos: o das práticas artísticas. Por outro lado, resistir à digitalização compulsiva da nossa realidade e manter a escolha da edição em papel. A edição ensaística na nossa área, sobretudo em papel, é, no nosso país, muito pobre, por isso, esta colecção é, também, um acto de resiliência: contra a escassez crítica e, porque não dizê-lo, contra a nova perversidade pintada de verde que nos quer vender a tecnologia como alternativa ao papel. Não será bem assim, todos o sabemos e esta colecção quer fazer parte desse lado resistente, ou não se designasse a si própria como “lado B”.
É, por isso, com algum indisfarçável orgulho que apresentamos este novo caderno, desta vez, com um importante texto da pensadora mexicana Irmgard Emmelhainz.
As questões aqui colocadas são de uma importância vital para o entendimento lúcido de muitas das práticas artísticas mais importantes da contemporaneidade. Porque, em primeiro lugar, as colocam num contexto político e social que é novo. A totalização global com que hoje nos defrontamos trouxe condições, também elas novas e voláteis, para os artistas e para as obras que realizam. A análise aprofundada que é realizada neste texto permite um esclarecimento e, diria um dos autores citados no texto, Fredric Jameson, uma consciência clara da cartografia cognitiva de cada um de nós. Só por isso, já seria importante a sua publicação e, contudo, existem outras valias que o texto nos traz. A capacidade de discutir sem constrangimentos alguns dos artistas mais importantes do nosso tempo, algumas das noções mais divulgadas e, sobretudo, as suas obras com esta profundidade é algo que já vai sendo raro. Num tempo sem tempo em que se recebe uma mensagem electrónica de parabéns no final da leitura de apenas uma página de um qualquer e-book; em que chefes de estado comunicam com tecnologias limitadoras da escrita e em que a crítica de arte, ou desapareceu ou está escondida, substituída por jornalismo aparentemente cultural e, no entanto, cada vez menos. Especializado que se encontra em atribuir estrelas que substituam as palavras. Neste tempo em que as imagens estão tão próximas de se afirmarem como a nova pandemia global e, assim, atingirem o seu grau zero de significação o que significa esta discussão proposta pela autora?
Aparentemente trata-se de um separar de águas, de uma enérgica força para introduzir a dissensão, mesmo que, de forma politicamente incorrecta. Ainda bem, diremos nós. Mas, também, uma espécie de chamada de atenção para todos os que, com as melhores intenções – que como sabemos, não nos servem de nada nestas práticas – se propõem a intervir politicamente a partir de uma possibilidade que se afirma impossível. A arte e as obras que as compõem ou se afirmam como tal ou, então, introduzem-se no meio lamacento do didactismo que lhes retira a sua condição fundamental: a sua inequívoca singularidade e opacidade. Razão talvez tivessem os situacionistas, nos anos sessenta, quando afirmavam que a arte teria terminado e que a solução seria avançar para a política. Sabemos o quanto isso é difícil ou mesmo impossível porque, sabemos, também, que para os artistas o fazer saber da arte é uma necessidade da qual podemos, mas não queremos desistir.
Fernando José Pereira
Como citar:
Pereira, F. J. (Ed.) (2020). Irmgard Emmelhainz. A arte útil e as indústrias culturais. Lado B - Cadernos DAP, (2). i2ADS/DAP. https://doi.org/10.24840/978-989-54703-7-2
Num passado que já parece longínquo, em plana vigência analógica, os grupos musicais pop editavam com frequência os chamados singles. Aí colocavam a música que lhe parecia mais talhada para o sucesso imediato e, logicamente, numa intencionalidade mainstream esta era divulgada e massificada intensamente. Como todos recordam os discos analógicos tinham dois lados (hoje aí estão outra vez…) um denominado A e o outro, denominado B. O carácter secundário do outro lado permitiu, também, que parte importante da experimentação avançada pelos intervenientes activos de então aí fosse colocada. A lógica era simples, só os mais curiosos e atentos iriam virar o disco e escutar o outro lado, o lado B. O tempo veio colocar em destaque toda essa vertente experimental e de risco. Não são raros os casos em que a recuperação se faz exactamente a partir das músicas impressas no lado B. O outro lado aparece, hoje, como o mais interessante, longe da assimilação e trituração comercial a que foram sujeitos os lados A. O seu distanciamento e natural obscurecimento perante os spotlights, apontados ao lado principal, preservaram-nos e trouxeram-nos até nós, hoje ouvintes digitais, como obras primeiras. A metáfora aqui apresentada pretende, antes de mais, ser um ponto de partida para uma reflexão mais aprofundada sobre a premência do deliberado afastamento a que se remetem algumas obras e textos. A sua permanência ausente da crista da onda (metáfora analógica, mas com intencionalidade digital) permite-lhes um grau de risco e de experimentação que não é passível de ser realizado em sistema de recepção mainstream. É sobre eles que queremos reflectir, sobre a sua necessária lucidez, que as protege e distingue da torrente de acomodação e deslumbramento, fundamento último para a sua existência enquanto obras ou textos que querem resistir à actual voracidade e velocidade do novo. Sem intuitos morais de representantes oficiosos de qualquer tempo ou tecnologia, apenas como obras ou textos.