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Neste número procurou-se acolher artigos que manifestassem a capacidade de indagar o uso e a operatividade do desenho nas várias disciplinas e funções onde o desenho está presente. Da generosa oferta dos muitos artistas, investigadores e docentes que responderam à nossa chamada, resulta o presente conjunto de artigos.
Editorial
Ao longo dos tempos, a pluralidade das práticas de desenho permite compreender uma extensa lógica de mundos e de campos de actuação: uma efectiva multiplicidade de intenções, de recombinações e de funções gráfico-plásticas. Persistindo sobretudo como veículos de expressão e processos de conhecimento, as práticas de desenho atravessam distintas fronteiras. Efectivamente, pertence ao próprio “âmbito disciplinar” de desenho a capacidade em captar as distintas “relações do real” que só a sua acção prática constitui e revela. A singularidade do desenho, ao considerar os seus diferentes modos de tornar visível, de representar, de figurar, de analisar, de imaginar e comunicar, reinventa constantemente o entrecruzamento dos seus campos de actuação: a arte, a ciência, o pensamento, e, claro está, a pedagogia.
Não por acaso, a “invenção” pedagógica do desenho coincide, historicamente, com a celebrada fama da sua concepção intelectual na época do Renascimento italiano. Se há, pois, campo subjacente à rica e profusa história do desenho, ele é, necessária e consistentemente, o da pedagogia. Se bem que associada a uma dimensão desprezada, e subalterna, referida ao reputado e menos apreciado academismo, a pedagogia do desenho constitui-se, para além de qualquer doutrina específica, o lugar e o tempo da transmissão de saberes e práticas, indissociável do contexto da cultura visual, das tradições técnico-expressivas, dos modelos operativos e métodos de representação. Os paralelismos históricos que hoje se podem estabelecer entre prática, teoria e ensino do desenho são aqueles que nos permitem aprofundar muitos outros sentidos e usos da potência visual e gráfica, mas também intensificar o propósito da sua intenção estética, ética e política.
Assim, a amplitude de campos de actuação tão diferenciados, que vai desde as artes até às ciências, da arquitectura à matemática, da arqueologia à astronomia, ou desde a engenharia até à biologia, mostra quanto o desenho se tornou um dispositivo de inscrição visual que mobiliza, regista, compõe a percepção das coisas e do mundo. Neste processo, são de facto os desenhos que aceleram os modos de apreender e de compreender; de recombinar e de sobrepor, de intercambiar o que, através da singularidade do gesto e da intenção, pensam os olhos e as mãos.
Que desenhos nos permitem, então, exemplificar, questionar e comunicar o que pensam os olhos as mãos? Se o desenho existe para além do projeto artístico, que outras experiências de visualização, de antecipação ou questionamento ele permite revelar, interpelar e responder? Tal como há desenhos que resultam da observação do real, há desenhos que imaginam aquilo que foi ou terá sido; há desenhos que permitem dar a ver aquilo que nunca existiu, há outros, também, que mostram o que poderá vir a existir, e, ainda, aqueles que configuram o hipotético ou o imperceptível.
Neste número procurou-se acolher artigos que manifestassem a capacidade de indagar o uso e a operatividade do desenho nas várias disciplinas e funções onde o desenho está presente. Da generosa oferta dos muitos artistas, investigadores e docentes que responderam à nossa chamada, resulta o presente conjunto de artigos.
A disparidade dos artigos desafia um campo muito vasto e ainda por explorar. Desafia, consequentemente, uma relação entre a escrita, o pensamento crítico, e o exercício das práticas do desenho, seja a necessidade de descrever, de argumentar o propósito de transmitir e ensinar, seja ainda a vontade operativa de ilustrar, de reconstituir e comunicar um facto, ou, especificamente, o exercício de questionar o fenómeno da percepção do mundo e das coisas, tal como a interocepção do corpo, seja, por fim, o desejo de fazer, de afirmar a condição ex- perimental, projetual e estética do desenho.
Em “Desenho de um espaço confinado”, três artistas e docentes da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) enunciam novas propostas de exercícios e interpretam os seus resultados, no contexto da crise pandémica que determinou o isolamento e a alteração significativa dos processos de ensino do desenho. Perante as limitações, com a prescrição de aulas telemáticas como meio para minorar a falta de contacto com os estudantes, entenderam desenvolver uma orientação à distância na qual incorporaram, justamente, as noções de incerteza e improviso.
Garry Barker apresenta-nos, por sua vez, uma investigação sobre como as práticas do desenho podem ser utilizadas para pensar a noção de corpo, tendo em consideração que o corpo é, ao mesmo tempo, a força motriz inerente à própria experiência perceptiva. O autor procura mostrar como o desenho permite reflectir sobre a condição exis- tencial e somática intrínseca da corporalidade, atendendo à situação sensorial e perceptiva do próprio corpo que sente. A profundidade perceptiva que aqui se analisa entende o entrelaçar de corpo e espaço numa concepção imperceptível, embora situada, de esquemas e expressões gráficas. O papel do desenho, enquanto acção performativa, busca assim figurar o que não é directamente visível do próprio corpo, mas graficamente configurável através do sentir.
O desenho é uma prática real, técnica e profissional, desde há muito existente no campo da investigação criminal. No domínio das ciências forenses, o desenho é praticado a par com os demais meios e processos de análise, informação, documentação e pesquisa, necessários para a resolução de crimes. Mariana Guedes apresenta no seu artigo uma incursão histórica e crítica do desenho forense tendo em consideração alguns casos paradigmáticos dos seus usos e práticas. Os exemplos permitem observar a adequação de diferentes modos de registo e de representação gráfica adoptados em distintas épocas e contextos de investigação judicial. O assassinato do Presidente John Kennedy, em 1963, é um desses casos, cuja reconstituição foi consecutivamente explorada e trabalhada através do desenho em estreita articulação com um vasto contexto de representações e documentos visuais, como a fotografia, o vídeo ou o filme. Sublinha-se neste processo a capacidade de simulação e de reconstituição visual do crime, mas sobretudo a necessidade de demonstração, ou seja, de convicção, das informações gráficas e visuais recriadas e comunicadas pelo desenho.
No seu artigo, Michael Croft apresenta resultados da pesquisa desenvolvida sobre percepção, processos de observação e desenho no contexto de uma proposta de investigação no I2ADS. A sua hipótese de trabalho visa compreender, numa perspectiva sinestésica, a interacção com outros sentidos e meios de registo, e em particular, com a voz. No âmbito da experimentação e do exercício prático, a proposta trata ainda de pôr à prova a condição de estímulo perceptivo que retroactivamente a imagem do desenho produz. Apoiando-se nas teses de Jacques Lacan sobre a pulsão escópica – le regard, que constitui, tal como a voz, o objecto do desejo –, o artista/autor procura assim considerar a inferência de um “olhar” que parte do próprio desenho para atingir o desenhador. Para o efeito, descreve a análise fenomenológica que constitui o articulado da sua experiência, relacionando três disposições operativas, designadas como momentos não-visuais, indo ao encontro desse “ponto cego”, a partir do qual, na construção do desenho, se joga a inter-relação entre sujeito e objecto de percepção.
Através da análise de dois esboços de Frank Stella, datados de 1963, João Vale considera a con- dição do observador perante a experiência estética da arte abstracta depois do modernismo. Como opera a intuição do espectador perante uma experiência visual nova, que claramente ele não reconhece? Na interpretação do autor, os desenhos de F. Stella vêm deslocar e desdobrar a experiência projectual do desenho, mas também a experiência visual da pintura, para implicar uma nova disposição cénica onde participa a condição projectual, o objecto artístico e o olhar do espectador. A novidade dos dois desenhos analisados reside na “negação” do espaço em profundidade, enquanto “caixa” narrativa, ao provocar um diferente “reenquadramento” das relações entre objecto e observador.
Nesta edição, destaca-se em especial o artigo de José Almacinha dedicado à pedagogia do Desenho técnico no seio da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade do Porto. Descreve-se não só a história recente do ensino do desenho ministrado na FEUP, considerando as transformações que, durante décadas, ocorreram nas disciplinas e actuais unidades curriculares, como, também, a natureza dos programas e respectivos objectivos. A partir da relação específica entre representação gráfica e geometria, a pedagogia e a didáctica do desenho têm por objectivos concretos a apreensão e compreensão de modelos visuais de configuração espacial de objectos. Neste sentido, a elaboração prática de exercícios de desenho visa um conhecimento de modelos de representação, que partem das condicionantes convencionais resultantes da Normalização técnica, com o intuito de desenvolver e agilizar a capacidade de registar, de visualizar e de conceber o fabrico de objectos e peças. A importância do desenho orienta deste modo, não só as formalidades comunicativas das representações técnicas, mas sobretudo permite activar outros modos de observar e compreender, de registar e interpretar, porque são, de facto, as imagens que interpelam e aceleram os processos de conhecimento.
Neste número, a secção de propostas e projectos visuais vem confirmar, sem surpresas, a diversidade e a variedade de experiências, de meios e instrumentos, de contextos e finalidades, de expressões e usos do desenho. Cada proposta apresenta, à sua maneira, um breve testemunho que enquadra e explicita a “razão” de ser dos desenhos: a investigação, a comunicação científica, o projecto, o pensamento, a singularidade autoral.
A prática diária que transpira nos desenhos do caderno de Francisco Ferreira interliga-se com o seu quotidiano enquanto autor, arquiteto e docente. Os desenhos que se apresentam não pretendem ser desenhos, num sentido autoral ou de objecto estético, mas sim marcas de situações e momentos de pensar, conversar, reflectir ou testar, que vão deixando, na página dos cadernos, as evidências de um acontecimento, cuja acção fica espontaneamente coreografada pela ponta de grafite.
O desenho medeia o diálogo entre artesão e obra final. Dos desenhos, bem como da conversa entre a Mónica e a Deolinda, depreende-se as razões, os temas e motivos, e em particular os aspectos técnicos que acompanham a imaginação e a execução dos tapetes de Arraiolos. Fruto de uma longa e convivencial aprendizagem, os desenhos em papel quadriculado e milimétrico, e não só, orientam o exigente saber-fazer artesanal, no qual se combinam imagens, modelos, padrões, geometrias, figurações, cores e medidas. Trata-se de apontamentos fundamentais para a invenção, a visualização prévia e a consecução compositiva de cada trabalho. Com efeito, com a prestação colaborativa e a clareza dos códigos gráficos utilizados tem lugar a antevisão e a supervisão concreta dos objectivos e resultados.
Os desenhos de Pedro Salgado têm como função fundamental comunicar e divulgar o conhecimento científico. O desenho torna-se por isso o meio privilegiado para recolher informação e reproduzir cientificamente os objetos representados. Quando se assume, em especial, o propósito da ilustração científica, os procedimentos gráficos conseguem ir mais além do que a fotografia, pois acrescentam e complementam informação detalhada, muitas vezes codificada, permitindo, no final, uma leitura clara, objetiva e compreensiva do que se pretende mostrar. Na atenção e na pormenorização expressiva dos desenhos e das ilustrações, Pedro Salgado cumpre a função de comunicar com grande precisão todos os elementos que demoradamente observa e desenha. O desenho organiza e compõe uma lógica gráfica e visual de extraordinária definição. As linhas, as manchas e os traços concordam por isso em dar forma, em configurar com distinção e clareza aquilo que demoradamente analisam e descrevem.
Artista plástico multifacetado, Pedro Tudela utiliza o desenho para pensar e desenvolver os seus projetos que vão desde a instalação à cenografia. No desenho, ele encontra o meio para fixar e expandir o pensamento de forma aberta e divergente. Os desenhos que se apresentam refletem esses momentos de fixação e, também, de inventiva, que permitem ao autor o diálogo e as reflexões perante as próprias (in)decisões em convergir ou divergir no decurso dos seus projetos. Os desenhos expressam assim a consequência do fazer e do imaginar, do pensar e do realizar, ao figurar caminhos e processos de representar, de transformar e concretizar as ideias. Reflectem ainda, como um manual de instruções, um modo comunicativo e expressivo que orienta a experiência visual do pensamento.
A intenção de projectar domina o pragmatismo do arquitecto, mas é pela imaginação que ele mobiliza as relações e as contradições, ou seja, o conflito entre o desejo de fazer e as condições do existente. Nas imagens dos cadernos de Philip Cabau, nas suas diversas páginas, combinam-se esboços, notações, diagramas, representações gráficas, muitas vezes coloridas. São desenhos que ao explorarem as formas e os espaços, procuram ao mesmo tempo exprimir o tacto e o contacto com as hipóteses visuais que constituem as “ideias”. Através do desenho, estudam-se assim aspectos gerais de um terreno, no delinear de pequenos mapas, analisam-se secções, partes e relações comensuráveis do lugar, justapõem-se texturas e cores, descrevem-se pormenores, árvores, plantas, e percorrem-se inúmeras vistas e perspectivas de uma casa. Os desenhos realizados, que têm como objectivo comunicar directamente com os demais intervenientes da obra, evidenciam uma manifesta hapticidade das formas, que nos aproxima do lugar, dos espaços e aspectos da casa, e tornam ainda visível, se assim se pode dizer, o prazer em desenhar.
Nos dois desenhos de Isabel Carvalho, que graciosamente cedeu para ilustrar a capa e contracapa da revista, intitulados Desenhos de estudo sobre a mecânica da água, é possível observar, como se de uma notação musical se tratasse, a morfologia de uma subtil vibração, tangível, tanto da ideia de linha quanto de intensidade e movimento. Ao considerarmos os arabescos e os circuitos zigzagueantes que as linhas põem em andamento, podemos imaginar, quase como se fosse uma insígnia, a corrente de energia que irradia das frágeis antenas dos desenhos. À artista, pela sua generosa colaboração, deixamos aqui o nosso agradecimento.
Por fim, os editores agradecem a todas as pessoas que contribuíram para este número com a submissão das suas propostas à nossa chamada de Março de 2021. Gratos também aos autores dos projectos visuais que gentilmente responderam ao nosso convite. É devido um agradecimento especial a José Almacinha pela amável resposta ao pedido que lhe foi endereçado, e pelo importante estudo que aqui e agora é publicado. Agradecemos também a Graça Magalhães, João Cabeleira, Jorge Marques, José Maria Lopes, Miguel Bandeira Duarte, Philip Cabau, Susana Mendes Silva e Teresa Pais, pela generosa colaboração na avaliação dos artigos.
Mais uma vez, a nota final: optou-se pela publicação dos textos na língua original em que foram escritos: inglês e português. Os artigos seguem o acordo ortográfico, ou não, segundo o critério que foi adoptado por cada um dos seus autores.
Natasha Antão, Silvia Simões e Vitor Silva
Porquê Psiax? Psiax é o nome de um dos pintores de vasos gregos que terão introduzido a grande mudança do desenho com a técnica das figuras vermelhas no início do século V a.C. Este é um dos mais notáveis aspectos da arte do desenho e da sua adaptação a uma necessidade tecnológica, empresarial, ritual e social, num dos períodos mais relevantes da cultura grega.
Se nos servirmos de uma analogia com a vida de Psiax na Grécia Clássica, e vivêssemos num período de figuras pretas, como se nos colocaria o quadro de inovação na representação da imagem nos artefactos que utilizamos dominantemente ou que poderão vir a ser utilizados? Ao ser produzido por meios digitais ou manuais, o que se inova e constrói? Como é que se acede a essas imagens? O que as caracteriza e como é que a representação ganha aspectos inovadores ou qualificadores da experiência artística?
A orientação editorial pretende promover e divulgar estudos sobre o papel que o desenho poderá desempenhar no nosso tempo, quer ele se concretize como processo de compreender o mundo, quer como meio de aprendizagem e ensino, ou como elemento caracterizador essencial dos objectos artísticos já existentes ou a criar.
Pretendemos dar a conhecer estudos sobre o desenho como imagem considerando que o desenho como arte plástica, manual ou digital, além de se constituir por um conjunto de elementos típicos e próprios da sua específica condição material, é, acima de tudo, uma imagem que ocupa lugares no universo infinito de outras imagens materiais, foto-químicas e electrónicas que hoje nos envolvem.
Importa ligar o passado do desenho - autores, modalidades, temas, tendências, escolas - com as urgências e o sentido de progresso e de ideologia, com as hipóteses que se levantam, com as necessidades que vão da sobrevivência ao sonho, recuperando a memória longínqua do desenho e conduzindo-a para uma actualidade em que se exigem novos entendimentos de uma arte básica do ser-se humano.
Interessa a publicação de estudos monográficos, analíticos, doutrinais, programáticos, metodológicos e críticos desde que se estabeleça, em qualquer dos âmbitos, uma relação entre o passado e o presente. Isto é, interessa colocar as diversas perspectivas em debate, em sintonia, em confronto, em paralelo, em analogia com os problemas, os esforços, as realidades, as obras e as teorias do nosso tempo, quer no domínio da pedagogia, da teoria e prática do desenho, quer no campo da expressão artística.
A Psiax integra uma chamada internacional de participações e revisão cega por pares. Adotando práticas que visam ampliar os contributos e sua consequente disseminação, reforçando a confiança científica e artística dos conteúdos apresentados, contribuindo para a qualidade da investigação realizada nestes domínios de conhecimento.