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Desenhar Chã — em Chã das Caldeiras, na Ilha do Fogo, Cabo Verde

Desenhos que perseguem a possibilidade de abandono dos gestos de representação que os habitam, para frequentarem os desafios epistemológicos de entendimento do que nos é estranho e de como o oculto e o indiscritível nos fazem falta.

Desenhar Chã

o que nos salva do nada

Na Ilha do Fogo, em Cabo Verde e nas povoações de Chã das Caldeiras, o Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura (M_EIA), promove com as populações um programa de reassentamento urbano, de superação da calamidade originada pelo vulcão que em 2014, mais uma vez, inundou de lava incandescente as casas e as suas terras. O movimento intercultural IDENTIDADES e o programa de investigação do Colectivo de Acção/Investigação ID_CAI tornou-se ao longo dos anos cúmplices dos desígnios do M_EIA e de suas acções junto de comunidades nas Ilhas de Cabo Verde, e nesse movimento se envolveu no que decorre em Chã das Caldeiras. Desta vez, dois professores e investigadores da FBAUP/i2ADS (Mário Bismarck e Sílvia Simões), acompanhados de dois estudantes do ID_CAI (Miguel Teodoro e João Abel Mota), para lá se deslocaram em 2018, cúmplices do que acontecia e ansiosos pela proximidade com o que por lá acontecia.

Da sua estada resulta o livro presente, onde se oferecem parte dos desenhos por si realizados, por Leão Lopes (M_EIA) e por crianças da comunidade. E textos redigidos na digestão do vivenciado, que permitem apresentar o outro olhar de cada um sobre o que o desenho procurou entender. Desenhos que perseguem a possibilidade de abandono dos gestos de representação que os habitam, para frequentarem os desafios epistemológicos de entendimento do que nos é estranho e de como o oculto e o indiscritível nos fazem falta, e colaboram com o que nos salva do nada

“Disseste: A correspondência entre a imagem e a realidade conduz a imaginação à neutralidade. Deixa, portanto, a imagem do objecto mentir ao objecto para que possamos ver o que há além, e à luz dessa visão vermos o que nos salva do nada.” Mahmoud Darwich. 2018. Na Presença da Ausência. Flaneur, tradução de Manuel Alberto Vieira. p. 132

Queria apelar para que este livro fosse usado na dimensão da sua incompletude. Que se tornasse evidente que no relacionamento intercultural o que se passa, as vivências ocorridas, o olhar e os desenhos feitos, apenas pode ser assimilado na fragilidade da sua contingência, na insuficiência de compreensão do que lhes é imanente.

A complexidade que se apresenta na paisagem e nos que dão vida pela sua pertença persistente a este mágico território, esconde-se, oculta-se numa dimensão sem tradução possível para quem lhe é externo. A deslocação para Chã das Caldeiras aproxima, entranha a hospitalidade da população, carece inevitavelmente de a interiorizar.

Aceitar, que chegar a Chã das Caldeiras faz emergir a impotência das palavras e a pequenez de qualquer gesto que tente abranger a dimensão da resiliência oculta na população, que erupção atrás de erupção persiste em habitar aquele lugar sublime e paradoxal e insiste na pertença àquela sua comunidade.

O livro, nessa dimensão discreta, torna-se um objec-
to de cumplicidade, de apreço.

José Paiva

Como citar:

Paiva, J. C. de & Simões, S. (Eds.) (2019). Desenhar Chã. i2ADS. https://doi.org/10.24840/978-989-54703-3-4