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O ciclo “O desenho contemporâneo em diálogo com a obra de Abel Salazar” nasceu da vontade de colocar a obra gráfica do professor, médico, investigador e artista numa relação dialógica com desenhos de outros artistas contemporâneos salientando não só a sua relevância, mas a pertinência destes mesmos desenhos na atualidade.
Abel Salazar foi uma figura fundamental na história da ciência, da arte e das humanidades. Nascido no séc. XIX pertenceu a um grupo de intelectuais vítimas da perseguição do antigo regime, o que fez com que tivesse sido expulso, em 1935, da Faculdade de Medicina e impedido de sair do país. Mais do que médico, artista e pedagogo, foi acima de tudo um homem do conhecimento. Preocupado com os direitos e igualdade entre os homens e mulheres, representou-os e escreveu sobre eles deixando-nos um legado de vários escritos, pinturas e desenhos. Foi a partir destes últimos que criamos este ciclo, que teve como intenção primeira apresentar diversidade e transversalidade do uso do desenho nos distintos campos de atuação, nos seus modos e utilizações no campo das artes, das ciências humanas, das ciências exatas e das ciências da vida. Foi a partir da leitura e interpretação desta coleção que os artistas convidados realizaram os seus projetos artísticos, dirigindo a sua compreensão às circunstâncias processuais do desenho, função, composição, temas e possíveis relações com a contemporaneidade.
Para o efeito, foram convidados sete artistas – Rosi Avelar, Mário Vitoria, Mário Bismarck, Sílvia Simões (cumulativamente curadora), Paulo Almeida, Bárbara Fonte e Martinha Maia – aos quais foi pedido para interpretarem, a partir dos exemplares selecionados, estes diálogos gráficos que deram origem a novas propostas artísticas. A escolha e seleção dos desenhos foi livre, nada foi imposto para que desenvolvessem os seus trabalhos, criaram a partir das obras do acervo a relação que entenderam pertinente. Pretendeu-se assim potenciar a criação de várias leituras também elas divergentes onde se identificaram meios e técnicas do desenho, processos e temas que potenciaram a relação expandida com o campo da prática do desenho. Demonstraram-se pontos de ligação e contaminação entre as obras da coleção e as práticas individuais que originaram sete momentos expositivos muito distintos.
Rosi Avelar, em “Instantâneos”, comungou com Abel Salazar os temas que estiveram na origem da planificação da exposição: “Retratos”, “Cenas de rua” e “Cenas de interior” temas que intitulam muitos dos desenhos de Abel Salazar e que são também o assunto do seu trabalho digital. Na exposição apresentaram-se desenhos digitais que Rosi Avelar criou no seu Ipad. Paralelamente, apresentou-se um vídeo sobre o processo de criação com as ferramentas digitais, em tudo semelhante ao processo de criação com materiais analógicos. Apesar dos dispositivos e materiais tão diferentes entre os dois artistas, foi muito evidente encontrar laços de proximidade neste diálogo.
Seguiu-se “Obsessões e Resistências”, exposição de Mário Vitoria, que se distribui por cinco grupos temáticos: “Variações”, “Sísifos”, “Impulsos”, “Animismo” e “Sátiras” que o artista nomeou a partir do trabalho de Abel Salazar. São fundamentalmente desenhos preparatórios e de estudo para outros projetos do autor. Desenhos de carácter mais operativo, desenhos que pensam e se pensam para um outro suporte e meio, e que, por isso, são desenhos que não têm como objetivo primeiro serem mostrados, mas que são reveladores desta forma compulsiva “de pensar com o lápis na mão” visível no trabalho Mário Vitória e muito presente no trabalho de Abel Salazar.
Em “Desenhos em desaparecimento”, de Mário Bismarck, expusemos o diálogo entre a obra destes dois artistas que encontraram no desenho de figura o instrumento ideal para entenderem e se relacionarem com o desenho do corpo. Apesar de sempre presente a figura humana, percebemos três grupos distintos de atuação. Nos cadernos dos dois artistas somos confrontados com desenhos de apontamento, ideias que se fixam pelo desenho, desenhos de estudo; passando para os desenhos de pequeno formato estamos perto do objeto final embora se possam entender estes esboços como momentos de suspensão entre a idealização e a formalização. Na parede, um conjunto de dez desenhos de Mário Bismarck, de grande escala e de carácter mais concluído, que no contexto da exposição poderão acontecer como consequência dos desenhos nos cadernos.
Visitando o acervo da Casa-Museu, encontram-se muitos desenhos de Abel Salazar referentes a paisagens que poderão, ou não, ser de observação direta pois nem sempre é claro o local a partir do qual foram produzidos. No entanto, o carácter exploratório dos materiais e os ambientes representados, foram o suficiente para que Sílvia Simões produzisse “Deambulações gráficas”. Cerca de 400 desenhos, distribuídos por três séries com diferentes formatos, incentivam encontrar nos gestos, composições, suportes usados por Abel Salazar o pretexto para representar a paisagem. Fruto do período de confinamento provocado pela Covid, sem poder sair de casa, o desenho foi a forma de mostrar e encontrar estas paisagens fruto da imaginação.
“Coreografias do riso” trouxe a público um conjunto de desenhos menos conhecidos de Abel Salazar – as caricaturas – desenhos produzidos maioritariamente entre os anos 1910 e 1915, período durante o qual ainda era estudante. Nesta exposição, Bárbara Fonte esmiúça o riso enquanto lugar de interrogação da humanidade e o riso e a sátira desvendam-se numa leitura atenta e sinuosa. As imagens não são o que parecem. Num conjunto de quatro desenhos de grande escala e um vídeo, Bárbara explora os corpos amputados e decapitados, configuram-se como ilhas preenchidas de símbolos e formas que nos inquietam, nos fazem reconsiderar, mas também nos fazem rir.
A “Leveza da Barricada” foi a resposta a um encontro inesperado entre os desenhos que Abel Salazar fez das carvoeiras do Porto, por volta de 1938, e uma série de intervenções no Bairro do Amial que Paulo Luís Almeida tem vindo a desenvolver desde 2007. Coincidência de datas, já que a zona residencial foi inaugurada também em 1938. O diálogo e encontro destes dois artistas dá-se na convergência das cenas da rua e da atmosfera dos desenhos de corpos feitos a carvão, assim como nos objetos e gestos presentes no arquivo de Abel Salazar agora reinscritos num contexto performativo e corporizados em desenhos de grande escala e num conjunto de vídeos.
Martinha Maia encerra este ciclo de desenhos com a exposição “Anatemnõ” palavra (que não existe em português) que foi buscar ao grego para dar a ideia de pele densa e espessa, que é preciso atravessar para perceber de que material somos feitos. Assim, como Abel Salazar, com um olhar micro sobre as lâminas observava e representava a evolução do ovário, criando o famoso método de coloração tano-férrico, de análise microscópica, Martinha acrescenta-nos camadas como se quisesse uma pele densa e impenetrável que representa numa escala ampliada, para isso recorre ao chá e à proteína de soja em vez do ferro. Para além destes materiais encontramos um conjunto de cerca de 40 desenhos e uma instalação que desmontam essa leitura por camadas dum tecido denso e complexo.
Duma forma diversificada, cada um dos artistas elencou o seu diálogo com os desenhos de Abel Salazar. Desde os desenhos preparatórios de apontamento, esquissos, esboços, passando por desenhos mais finalizados, até ao desenho/ ilustração científica, todos se relacionaram e deram visibilidade à diversidade do espólio de desenhos, só possível porque se tratou dum homem que pensou o desenho como forma de entender e representar o mundo nas suas distintas dimensões.
Sílvia Simões (i2ADS/FBAUP)
Curadora do ciclo de exposições