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Mais que Palavras Ditas

Esta exposição nasceu de um repto lançado, em Fevereiro de 2019, aos estudantes de Gravura da FBAUP, no sentido de desenvolverem um trabalho que dialogasse com a obra literária de Agustina Bessa-Luís.

  • Edição
  • Ana Paula Coutinho e Graciela Machado
  • Ano
  • 2019
  • isbn | issn
  • 978-989-54703-9-6
Mais que palavras ditas

Estávamos conscientes de que não era um desafio fácil, pois num primeiro momento o universo agustiniano pode parecer demasiado anacrónico e labiríntico aos olhos de jovens formandos em artes plásticas. Mas o fulcro do repto residia exatamente na prova de fogo por que passariam ambos os lados des- sa relação erguida como mote para outras formas de leitura de Agustina.

Como ler, e registrar o que se lê, para lá das palavras? Como reagir com a força da expressão artística, que não se verga apenas à sua reprodutibilidade técnica, à escrita de quem, como acontece com a autora d’ A Noite da Ronda, sempre esteve interessada em “desinstalar”, e absolutamente convicta da importância dessa inquietação? – “Eu desmarco os outros da rotina, espanto a manada. Depois os efeitos são maravilhosos, combinam com a imortalidade”.

As palavras escritas iriam ficar gravadas. Lidas ou ouvidas, entoadas. Palavras calcadas e decalcadas d’ As Estações da Vida de Agustina Bessa-Luís. Decifradas e repetidas por cada um nas contradições de autoria e matéria mais do que suficiente para ser apenas técnica. Era dito, não podia ser aprender a gravar, ainda que isso fizesse parte. A cada um, pedia-se o desprendimento em relação às matérias, aos protocolos difí- ceis e ensaiados pela primeira vez, às nomenclaturas, ditas em várias
línguas. Começar pelas palavras.

A gravura calcográfica é feita a partir de chapa. Sólida e cinzenta, desfaz-se em pó ou em banhos salinos saturados, borbulha e aquece sob a ação de ácidos. Ganha corpo com as tintas à base de óleo e pigmentos minerais, com uma força e presença, que o desenho não tem. A gravura é tirada da prancha: sacada, espremida ou extraída entre feltros e folhas de papel saturadas de água. Desenhadas, riscadas, sulcadas, granidas, incisas, talhadas, delineadas, cortadas, calcadas, mas sempre impressas, linhas ou manchas carregam a pressão e a intencionalidade. E são gravura.

Abrem-se as imagens a um caminho, também ele, de desencontro e meta- morfose. Tudo de uma vez em cima de chapas nunca pegadas, vernizes dos quais se desconhecem os odores e humores, enfumados ou virgens, per- corridos a palmo ou retocados a pincel, para esconder as falhas. Também pontas de metal, ou agulhas em tudo diferentes do lápis e da caneta usa- das para morder as linhas e granidos onde ficarão depositadas as tintas negras repletas de negros de fumo e óleos. E o que se desconhece, sempre à frente, demasiado, acompanhado ao ritmo das palavras estranhas, que se entranham.

As palavras ouvem-se, por entre provas, onde se ensaiam as deposições supérfluas de tinta ditas veladuras, familiares a quem pinta sobre tela, mas que na gravura, ainda na chapa, se antecipam, como esfregaços. As palavras batem na diferença das ações e nada nos protege da surpresa da- quilo que é tirado. Na prova, o desenho insuficiente carrega-se de tinta, cobre as rebarbas bem-vindas quando entendidas na sua função. Através dela, o desenho descobre-se na consistência e viscosidade necessária a cada tipo de técnica. E a tinta, o aliado perfeito, mostra, sobre o papel, os papéis. No seu grão, cor e peso, como os sulcos, incisões ou deposições, afinal a forma encontrada para a imagem e para a definição do território de cada um.

Repetir ainda para traduzir um desenho ou uma fotografia onde não existe um modo neutro. Esquecer e parar de escutar o que a técnica quer ser sozinha. Através dela, falar dos caminhos de ferro em recuo numa Europa em movimento; dos percursos sentidos passo a passo numa cidade onde a sinuosidade do rio marca a liberdade; das linhas verticais como cabelos, sulcados e tingidos de flores colhidas; das ruínas como personagens saídos de filmes nos comboios e diários da rotina; das mensagens com as palavras autografadas onde se confia a força que a presença não tem; das fotografias trasladas da paisagem que se vê e sente estranha; das fotografias de família analisadas nos seus interstícios microscópi- cos. Tudo maculaturas, cognatos e erros e outros factos.

Esta exposição de gravura, em desdobramento da Jornada Agustina: Outras Leituras, Novas Metamorfoses, surge aqui integrada no ciclo E Contudo, Elas Movem-se! Mulheres nas Artes e nas Ciências, organizado pela Reitoria da UP, em parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Ao mesmo tempo que homenageia, com novas metamorfoses, uma escritora que se moveu magistralmente na Literatura, pretende também mostrar que a Universidade se move entre as suas Faculdades. Ainda quase
impercetivelmente, mas move-se.

Ana Paula Coutinho
Graciela Machado