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Esta colectânea é um encontro de amigos e companheiros com quem em várias ocasiões tive a honra de tomar parte nas reflexões e práticas educativas contemporâneas, produzidas por uns e por outros, em prol de uma educação artística mais sensível às transformações do mundo no nosso quotidiano.
Evocando René Magritte em Ceci n’est pas une pipe alerto o leitor que isto não se trata de um prefácio. Esta colectânea de textos de colegas professores de educação artística que me cabe inaugurar é antes de mais uma provocação para me tirar de um certo comodismo arquipelágico porque tenho tentado primar nos últimos tempos. Isto porque não tenho coisa a dizer que possa acrescentar aos trabalhos aqui apresentados: experiências relevantes no campo da Educação Artística que, afinal, me actualizam e despertam-me a considerações, muitas vezes questionáveis, a partir deste deserto de mar por onde eu me perco.
Esta colectânea é um encontro de amigos e companheiros com quem em várias ocasiões tive a honra de tomar parte nas reflexões e práticas educativas contemporâneas, produzidas por uns e por outros, em prol de uma educação artística mais sensível às transformações do mundo no nosso quotidiano.
Marcar presença aqui neste convívio é dever de cúmplice e de companheiro.
O tema deste encontro, em primeiro lugar, desafia-nos por associar a Educação Artística a uma dimensão política candente nos nossos países resultante de uma história colonial recente — a colonialidade — da qual não se sabe ainda como reverter o seu impacto social e político no nosso dia-a-dia, apesar de tantas revoluções inconsequentes, apesar de lutas armadas de libertação consequentes, apesar da ciência e do saber para dela nos libertar. Em segundo lugar exalta-nos por resgatar o debate que vem de longe sobre os mesmos desafios que se nos põem enquanto supostos agentes de mudança e renovação de paradigmas educativos que nos dizem respeito.
Confesso aqui um certo “desconforto” que me interpela, que suscita argumentação porque não sei como produzir um pensamento útil sobre uma realidade, intrínseca, fácil de questionar, mas difícil de produzir respostas convincentes no contexto onde me movo sendo eu próprio imbuído de valores e práticas culturais marcadamente coloniais. Diria mesmo, fortemente marcado tanto politicamente como administrativamente e, sobretudo culturalmente, por um eurocentrismo ancestral apesar de minha identidade híbrida, “cafrealizada” por outros elementos que entraram na química de minha génese cultural. Poderia apresentar-me como inocente, mas a verdade é que não sou, sou antes cúmplice e agente de valores que combato mas, qual D. Quixote, a guerra, inglória, só se realiza em mim.
Referi acima ao desconforto do apêndice “decolonialidade” associada à educação artística. Volto a ele porque ainda não sei bem onde encaixar a noção de “colonialidade” no meu caso, no caso cabo-verdiano na óptica da corrente mais vulgar e mais estudada do colonialismo, ou seja eurocêntrica, monolítica: ou seja a da ocupação, apropriação e “contaminação” por vezes violenta de uma cultura endógena por parte de uma outra “alien”, desconhecida, sabendo, contudo que essa “contaminação” instala-se muitas vezes em paz, a autóctone negoceia, incorpora, integra, “canibaliza”, criouliza, não se importando com a resultante cujos elementos que entraram na sua composição já não se distinguem dela. É o nosso caso, é o meu caso. A colonialidade decorrente da colonização no plano político e administrativo, embora se instale transversalmente na vida de uma civilização autóctone, encontrada, é bem diferente da abordagem da mesma noção (neste meu caso) especialmente no plano da cultura e da educação. Também da Arte. Espaços que pressupõe noções de liberdade, de assimilação pacífica, de rejeição e de incorporação do outro. De igualdade. A sua resultante neste particular só pode ser estudada e reflectiva com serenidade sem pudermos ver o fenómeno de uma perspectiva histórica e dialética, divergente. Por exemplo, da perspectiva de quem supostamente é pervertido, alienado, violentado. No caso cabo-verdiano, de sua identidade-raiz, não será fácil sustentar a noção do colonialismo como é habitual perceber-se. Há-que considerar que o outro chegou a território de ninguém. Serão “outros”. Nestas ilhas, sem história, sem cultura, sem identidade, deu-se uma “instalação natural”, uma apropriação donde nasceria um novo episódio histórico, uma nova cultura, uma nova resultante de identidade(s)-raiz que a conformaram. Vinda do mar e doutras geografias. Sem qualquer outra possibilidade senão a da criação ou invenção de uma nova identidade, novos hábitos, novos costumes, nova língua, novas formas de negociar, novos modos de vida. Híbridos, todavia. Impostos por elementos que não seriam outros que os da insularidade, da natureza ecológica do meio, da utopia e da vontade e estranha determinação humana em se realizar em meio a adversidades de toda a ordem.
Embora território de ninguém, ocupado pelos que chegaram e dele fizeram seu, o que nas ilhas se instalou de facto foi bem diferente do que veio a tomar-se como resultante noutros territórios, com culturas autóctones, ancestrais. A resultante hoje —, onde colonialidade e decolonialidade enquanto questões de política e de poder exógenos — deverá ser particularmente estudada nos planos referidos (história, cultura, identidade-raiz), campos do saber e do ser.
O campo da Educação Artística e seu projecto educativo terá um espaço de actuação sui generis nessa nova epistemologia decorrente da colonização. Mas teremos que ter em conta a sua missão de “campo” que é questionar sem sancionar, despertar para melhor sentir, actuar como princípio de aprendizagem. Será nesse campo que melhor poderemos entender, para desconstruir e aprender, a idiossincrasia de culturas inclusive aquelas que se apropriaram pacificamente do aport do outro sem qualquer necessidade de o questionar.
É aqui que o eurocentrismo, a decolonialidade intrínseca a processos outros, não deverá ser questionado fora de uma matriz cultural que já o integra desde a sua fundação e que a absorve ideologicamente e politicamente com todas as suas consequências. Os modelos de organização social, os suportes constitucionais das nações resultantes, os paradigmas do desenvolvimento desenhados, emanados e financiados pela mesma matriz — eurocêntrica — são pacificamente absorvidos e transferidos para uma realidade que esta, sim, acaba por se tornar refém de uma epistemologia assente “irremediavelmente” na história do colonialismo ocidental.
Qual será o papel da Educação Artística neste emaranhado contexto cultural e histórico. Onde o outro conta em nós, onde é necessário promover as condições e sentidos para uma outra ordem de pensar, de questionar, de experienciar o mundo? Qual poderá ser o papel do novo educador consciente dos desafios de hoje que não serão tão diferentes dos de ontem? Como deverá proporcionar a crianças, adolescentes e adultos com quem interage oportunidades de pensar o futuro interpelando a história e questionando criticamente o presente nas suas dissimetrias sociais e económicas? Se os meios e os instrumentos teóricos que vimos repetindo ainda nos parecem eficazes, não creio que estejamos desatentos à necessidade de os adequar e, ao papel da educação, às questões candentes porque vive o mundo de hoje: a pobreza extrema de mais que muitos de nós; as perseguições e aniquilamento do divergente e do particular; o capitalismo desenfreado a implantar-se doidamente em países pobres cada vez mais cativos de um novo e escandaloso sistema financeiro mundial; a liberdade e a soberania das nações menos influentes impiedosamente esmagadas sob a pesada bota hegemónica dos donos da tecnologia e do capital mundial; a negação do direito a existir com o mínimo de dignidade de grande parte da humanidade; a sonegação do direito à boa educação e bem estar de toda a criança; o medo de uma parte da humanidade sobre a outra parte, enfim…
Qual será o papel da Educação Artística neste mosaico de problemas que o mundo, hoje, nos oferece? Não saberei responder, embora esta questão, empurrando um grande ponto de interrogação à frente, me vem perseguindo há muito tempo. Às vezes penso que deveríamos suspender até ver o adjectivo desta educação. Dar um tempo sabático às tendências que vêm de longe e que limitam o campo da educação dos sentidos que será preciso e urgente restaurar. De todos os sentidos. Desde o tacto ao cheiro. Para nos prepararmos melhor a sentir o mundo e suas complexidades também pelo cheiro. Pelos sinais que andam no ar, pelo toque que as injustiças deste mesmo mundo deveriam produzir em nós em modo de indignação à flor da pele, de forma a suscitar acções e resultasse de imediato nas mudanças necessárias para um novo existir. Sem medo. Eis o que me parece ser uma educação que pretenda ser futuro. E se a Arte estiver por aí, tanto melhor!!
Aprendi muito com as experiências aqui insertas; algumas ensaiando uma nova abordagem metodológica do ensino artístico em contextos culturais divergentes, e matriz (colonial) comum; todas de uma forma ou de outra reclamando um novo pensamento crítico e de acção nesse campo. Isso me conforta e traz uma nova esperança ao futuro do ofício e novos sentidos de labor. Trazer a EA para o campo dos problemas reais das pessoas, sejam sociais sejam políticas, será imprimir-lhe a dimensão epistemológica que lhe cabe e ao seu sentido de missão enquanto campo do pensamento e de aprendizagem que se dirige, por isso, às pessoas e seus problemas, à comunidade cultural a que pertencem. Também ao campo da política para poder questionar por dentro o seu papel e o papel do Estado nas políticas educativas e culturais e na vida da sociedade que representa e gere.
José Paiva no texto inserto nesta colectânea exalta essa dimensão e compromisso político, hoje, indissociável da missão do “educador”. Nele, sublinha que hoje pode ser um tempo de reconfiguração necessária dos processos educativos, de que somos também actores e aprendizes, de forma a confrontar discursos e práticas educativas reprodutores de ideais e desígnios de poder que queremos combater. Acredito que será este, esta urgência de luta corpo a corpo com o estabelecido, também um desígnio de cada um de nós embora contaminados pelo objecto de nosso combate. Que não se esgota no eurocentrismo, mas que também se expressa noutros “centrismos” às vezes respondendo tacitamente a estratégias ideológicas e culturais específicas não menos questionáveis que o que nos traz aqui à confronto e à discussão. Já lá vai o tempo em que o nosso confronto à colonialidade foi contrapondo-o com a “africanização dos espíritos”. Com um outro “centrismo”, considerando a ingente necessidade de nos libertarmos daquilo que nos é intrínseco, irremediavelmente: das marcas mais profundas e negativas do colonialismo. Marcas essas constituintes de nossa identidade resultante que, suprimidas, seriámos obviamente outras. Melhor, talvez. Mas não nós, exactamente. O que não sabíamos então é que não há volta a dar à História, mas haverá sempre a possibilidade de a recriar, de vê-la sob outro ângulo e de a reinterpretar, hoje. Eis a oportunidade deste nosso “tempo de transformação e reconfiguração necessária” na óptica de José Paiva.
Estando absolutamente de acordo com essa visão e paradigma de conformação do futuro da educação, o problema que se me põe é o papel do Estado, regulador, ideologicamente centralizador, programador e financiador de um sistema cujos próprios promotores “tempo de transformação e reconfiguração necessária” dele dependem. Como conciliar esse paradoxo sem considerar a possibilidade de um “golpe Estado” epistemológico? É claro que rupturas e acções de “guerrilha” vêm-se dando — veja-se o exemplo destes encontros “marginais” —, mas a verdade é que a luta é francamente desigual.
A contribuição de Ethel Batres, inaugural neste volume, relata o processo de colonização sobre culturas e povos originários (no caso da América Latina) que se estendem a casos no Continente Africano, acrescento, coincidentes em tempo histórico, em origem e cultura colonial. Retrato de um processo ainda vigente no contemporâneo que será da máxima importância analisar e discutir do ponto de vista interno, do ponto de vista da resultante desse processo. Aliás, a autora recorre a Aníbal Quijano para nos lembrar que a perspectiva eurocêntrica não pertence exclusivamente aos europeus ou às forças dominantes do capitalismo mundial, mas sim a “nós” que fomos educados sob seus valores culturais, hegemónicos. E, diria, que só a nós cabe a determinação de destrinçar até onde somos aquilo que negamos ser, intrinsecamente e irremediavelmente um outro que não é, todavia, aquele de há quinhentos anos. Mas um outro de hoje com todos os outros de ontem dentro de nós.
Subscrevo na íntegra a lembrança de Aníbal Quijano como deverei ter feito perceber.
Em Cabo Verde, tal como na Guatemala, conforme nos dá conta Ethel Batres, o paradigma do desenho curricular é também monopólico, hegemónico e impositivo. Decorrente obviamente de um “processus” que atrás tentei esboçar. Pela mesma razão as mudanças radicais são inviabilizadas operando nos centros de decisão resistências políticas que protelam mudanças e bloqueiam espaços de diálogo ou oportunidades de discussão que possam introduzir a necessidade de “reconfigurações necessárias” ao sistema educativo.
O que nos sobra é a possibilidade de “insurreição” nalgumas frentes marginais e mesmo nelas o confronto se dá apenas no plano da utopia, não se vislumbrando a possibilidade de uma perversão de dentro do sistema que possa produzir, experimentar e operar essa vontade de mudança. Lamentavelmente.
Leão Lopes