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Este número da revista Derivas surge, pela segunda vez, como um conjunto de textos produzido no âmbito do seminário de escrita científica ao nível do Doutoramento em Educação Artística da Universidade do Porto.
Ler estes artigos estimula-me a desenhar e fazer marcas. O que quero dizer com desenhar é deixar uma marca sem impor qualquer limite (marco) às minhas ações. Enquanto ação, a agência de desenhar é composta e participativa. É também uma forma de pesquisa. Para melhor compreendermos a natureza desta ação, imaginemos diversas pessoas a desempenharem diferentes papéis nas artes. Poderiam ser autores, investigadores, ou artistas e designers, mas também leitores, membros do público, ou estudantes e participantes. O que os uniria? Haverá algo que eles têm em comum ao participarem em tal marcação? Se considerarmos estas ações como marcas da pesquisa cujos limites estão em aberto, poderíamos argumentar que estas marcas representam algo peculiar e único acerca da pesquisa artística? E se atribuíssemos a isto uma imagem, que aspeto teria? Poderíamos considerá-la a própria coisidade da pesquisa artística?
Há uma certeza na execução destas marcas da pesquisa artística e o que consideraríamos como a sua coisidade: mesmo parecendo ser uma demarcação, a marca deve resistir à ideia de tornar-se um limite (marco). Com isto quero dizer um limite de conceitos que alguns presumiriam “consumir” por via de um argumento, que, na linguagem da pesquisa, muitas vezes se espera que ganhe “estrutura”.
Isto é mais fácil de dizer do que de fazer. Dado que na maioria dos artigos deste volume há um portento pedagógico, o “instinto” construtivista, pelo qual formos ensinados a aprender, implica invariavelmente que se tente desenhar um quadro metodológico dentro do qual o argumento é encaixado, mesmo quando o que está em jogo é o caso do ambíguo, do curioso e do questionado — onde se defende claramente as marcas que negam a certeza da demarcação.
Para lá do nosso construtivismo escolarizado, quero aqui sustentar e afirmar fortemente o chamamento pelo qual todos os que escreveram estes ensaios se aventuraram para além do que nos ensinaram a fazer nos nossos anos de formação. Na escola, diziam-nos sempre que um caso conclusivo é primordial para um argumento, não importando qual o tema ou a disciplina que a pesquisa de alguém possa implicar. Mas aqui, nestes ensaios inspiradores, as marcas permanecem desafiadoras. Eu diria que o que as mantém juntas é aquele horizonte sobre o qual nos convidam a nós leitores a vagar, com o qual somos encorajados a nos envolvermos e a explorar. O que estes estudiosos nos convidam a fazer é partilhar a audácia pela qual a coisidade da pesquisa artística é oferecida (como um presente, como oferta e como talento) através de uma abordagem que é traçado ( desenhado e tirado) pela forma como, com razão, insistem em manter a sua própria reivindicação: (a) como artistas com a intenção de refazer e desfazer os caminhos pelos quais, (b) como investigadores continuam a ser absorvidos por uma infinidade de possibilidades sem permitir que a sua pesquisa fique presa a conclusões únicas.
Todos os artigos nesta edição navegam uma vasta literatura que se apresenta a nós leitores de variadas formas. Pesquisam um corpo de obras, temas e possibilidades. São motivados por uma série de questões que vão desde os desafios do eu consumista e da mercantilização, a qual a Caroline Biscaino de Melo apresenta de forma abrangente no seu profundo envolvimento com teóricos e filósofos notáveis, a noções como materialidade e conservação que Beatriz Duarte leva além daquilo que é convencionalmente esperado na sua análise de vários artistas pertinentes cujo trabalho se centra no patrimônio contemporâneo.
Em outros artigos, outras questões surgem de uma abordagem da pedagogia que revisita a história afastando-a de interpretações fixas. Isto lembra-nos que mesmo quando procuramos sair dos limites, para que possamos decretar a mudança, devemos fazê-lo dentro dos domínios de uma política. Esta realidade leva-nos a procurar horizontes abertos em vez de terrenos fixos, ao mesmo tempo que somos desafiados pela educação em todas as suas vertentes e pelo facto de não poder ser abordada in vacuo, como nos recorda Victor Filipe Sala na sua análise da educação artística em Moçambique.
Da mesma forma, não se pode escapar e muito menos negar a historicidade da educação, a cujas junções se chega a partir de diferentes direções. Anna Carolina Cosentino lembra-nos grandemente que acabamos por compreender que os complexos desafios da descolonização não podem ser ignorados, porque é nas realidades sempre presentes do colonialismo que encontramos a forma como o discurso e a prática da compreensão pedagógica procuram continuamente imaginar o que muitas vezes se afirma ter sido amplamente captado.
Quando se fala de imagem e imaginação, a mesma coisidade pela qual a pesquisa artística nos impele a valorizar o que outros domínios do conhecimento parecem ignorar, incita-nos a revisitar o que presumimos saber. No seu compromisso com aquilo que é visto (e, implicitamente, não visto) pela fotografia, Cristianne Melo convida-nos a revisitar esta forma de arte há muito estabelecida enquanto desafia os preceitos do oculocentrismo. Da mesma forma, Salomé Corte-Real conduz-nos por géneros que parecem ser novos – como a selfie – quando na verdade o nosso encontro com o eu (onde, como se diz em inglês, “the I meets the eye”) nunca nos deixou. Ao olharmos para trás para esses media, não podemos ignorar a forma como evoluíram historicamente em contextos complexos, que eram políticos, na medida em que eram técnicos, pedagógicos, na medida em que permaneceram vinculados a essas relações dinâmicas pelas quais genre e gender, como Ana Pereira corretamente argumenta de forma abrangente, não podem ser desacoplados.
Uma linha que emerge destes artigos é que, se continuarmos a consentir as suposições pelas quais a educação e a pesquisa artísticas permanecem objetos (substantivos, na verdade), corremos o risco de ficarmos presos na fixidez do efeito do “projeto”. Como bem afirma Ingrid Benitez no seu artigo, a pesquisa apresenta-nos uma ocasião multi-verbal, onde um projeto se desaprende e se torna um “não-projeto”. É assim que o sentido de um projeto enquanto verbo (talvez como ato de projetar) deve ser incorporado. Isto abre a investigação a uma pluralidade de subjetividades que nos convidam a outras formas de dizer e conhecer que se enredam deliberadamente numa poética do ser singular, a qual Selda Soares considera através do conceito de corazonar.
Ao navegar estes artigos, não podemos deixar de ficar devedores da riqueza pela qual eles ligam o que parece estar inicialmente desligado. É de certa forma uma ironia produtiva (se é que poderíamos falar de tal coisa) afirmar como é que, num contexto de estudiosos que evidentemente não se sentem à vontade com presunções baseadas em “soluções” simplistas, o encontro dos seus trabalhos abre tantas novas possibilidades.
Todos os artigos confirmam que, embora acentuando possibilidades abertas, a pesquisa em artes não busca soluções finitas, nem os artistas-pesquisadores procuram ter a última palavra. Se é esperado que a pesquisa em arte forneça “soluções”, tudo o que ela pode oferecer-nos é um horizonte de possibilidades que permanecem em desacordo consigo mesmas. Da mesma forma, ao envolvermo-nos com a coisidade da pesquisa em artes na sua peculiaridade e especificidades de fazer, produzir e ser, aprendemos que, em vez de procurarmos resolver problemas, continuamos a valorizar o potencial problematizador das artes. Nesta escolha de método, as artes ajudam-nos a valorizar o temporário, o incompleto e o contingente, da mesma forma que as marcas nunca poderiam demarcar fronteiras duradouras, mas, em vez disso, elas gostam de encontrar continuamente novas marcas.
John Baldacchino
A revista Derivas é uma publicação de carácter semestral dos programas de Pós-Graduação em Educação Artística da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e do Núcleo de Educação Artística do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. O objectivo é publicar artigos inéditos, sujeitos a revisão cega por pares, possibilitando um espaço de divulgação de investigação em educação artística. Pretende-se criar um espaço de confronto de perspectivas, que contribua para a problematização e para o debate das tensões existentes nesta área. A revista é aberta à participação de investigadores, de mestrandos e doutorandos e a profissionais ligados à educação artística num sentido abrangente.