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A ambição da Derivas #4 é a de afastar a tentação de completude, de finitude e de totalidade.
O #4 Derivas traz-nos dez contribuições de investigadores que se dispersaram pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto até chegarem às páginas da revista. 9 textos, mais um que é este, saem das mãos de professores, estudantes e conferencistas, para uma discussão aprofundada sobre o que é a investigação em Educação Artística no âmbito das atividades do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade e/ou do Doutoramento de Educação Artística. Mais uma vez, evita-se na Derivas a tentação de dar um sentido temático a um número que, todavia, se centra fundamentalmente na escola de artes do porvir; mas não a instala, antes a desinstala. Ainda antes de chegar a ser a escola desejada para o século XXI, desconstrói-se esse porvir como um efeito de poder e recomeça-se de novo. Como que para não deixar passar o tempo – que é aqui, agora – de a repensar mais uma vez.
A escola de artes pode assim ser ventilada por dez pessoas que, independentemente da sua posição académica, incorporaram a persona do investigador e suspenderam o tempo, o espaço e as categorias de pensamento já dadas para injetar um novo ar. Nenhum texto se considera acabado, nenhum rasto de propostas ou soluções. Derivas #4 unifica-se apenas na multiplicação de possibilidades, de desdobramentos. Se pensar a escola de artes do futuro poderia dar o mote de uma unidade temática, logo esse núcleo se espartilha em geografias reais e imaginárias, em tempos desfasados, concretos ou utópicos.
Esta revista de Investigação em Educação Artística remete, acima de tudo, para uma postura metodológica, uma vez que se permite editar textos onde os procedimentos se vão perfilando numa abordagem de paradigma crítico e tendencialmente pós-estruturalista. Um problema de investigação alinha-se com uma interrogação de ‘como?’ e nunca por ‘o quê?’ e explicita, frequentemente, de que estamos a falar quando falamos de, mostrando a violência naturalizada nos sentidos e pulverizando-os, em direção a novas dobras. Concomitantemente, os objetivos de investigação são gizados em torno de palavras onde impera o prefixo latino des– ou o dis-, de raiz greco-latino, que exprimem as ideias de separação, afastamento e intensidade, ou até de direção para diversas partes. Ao coligir palavras e ideias fortes, a Derivas mostra integrar um autêntico thesaurus de descaminhos para a investigação em educação artística.
A ambição da Derivas #4 é assim a de afastar a tentação de completude, de finitude e de totalidade. O que liberta também este editorial para desdizer, de vez em quando, o que realmente aconteceu. Porque só o texto, cada texto, pode dizer de si. Neste sentido, coloca-se aqui uma série de substantivos que julgo serem significativos para explicitarem este estar a ser da rotura. Por isso, são quase todos sufixados em –mento, isto é, decorrentes de uma ação, onde apenas se verifica a ocorrência de uma mudança de estado, sem que seja identificado um agente causador.
Descerramento. O número inicia-se com o artigo de Ana Sofia Reis com uma proposta de indisciplinar o currículo para as artes, desde a História da Cultura e da Artes, com o recurso ao Atlas Mnemosyne de Warburg. Contra a compartimentação disciplinar, mas sobretudo contra a imposição de conteúdos de uma violência simbólica já naturalizada, propõe-se integrar, nesta disciplina do ensino secundário português destinada ao Curso Científico Humanístico de Artes Visuais, outros conhecimentos insubmissos. Inesperados. Incontroláveis, até.
Desencantamento. Ana Catarina Almeida investiga sobre o seu desejo de uma escola de artes outra e acaba desencantada diante da sua condição de (im)possibilidade. Esta escola de artes que há de vir só se permite num tempo que não existe, num enredo próprio de utopias. Essa perceção constitui-se a partir de uma interrogação sobre a historicidade do sujeito do desejo que imagina essa escola. Esse sujeito remete para essoutro acriticamente designado por artista e que não é mais do que um espectro do Romantismo. É para esse fantasma investido de génio que o presente se dirige, a partir de estilhaços de uma escola que foi pensada desde a Renascença e se incrustou no longo século XIX. Estamos sempre no futuro de um passado distante a viver uma utopia – na impossibilidade de um contemporâneo.
Dissenso. Leva-nos Denilson Pereira Rosa a conhecer que a dissensão é não apenas possível, mas, sobretudo, profícua. Pode resultar na construção de um ensino de artes visuais específico, diferenciado e intercultural, como aconteceu na comunidade quimbola de Conceição das Crioulas, onde professores, estudantes e comunidades, num trabalho de extensão crítica, fabricaram o seu currículo local.
Desterritorialização. Com os pés descalços no caos, convida-nos Lara Soares, seguindo Francesco Careri, a seguir um desscaminho para pensar o espaço da educação e da arte. Dentro e fora destes espaços, seguindo como numa viagem, poderá talvez encontrar-se uma nova ideia de escola. Pelo menos, novas rotas.
Dissentimento. Fabiano Ramos Torres conceptualiza uma desterritorialização – em direção a outros tempos, a outros espaços –, em que escola e arte sejam interrogadas, desmontadas e desconstruídas. Trazer para a educação artística a possibilidade de aderir à experiência do pensamento como o impensado implica-se aqui numa investigação da rostidade. Por exemplo. Cogita-se uma escola fundada na heterotopia rizomática, isto é, um lugar e um tempo onde não há princípio nem fim, onde os diferendos estão sempre ativos, onde a multiplicidade, o heterogéneo e as dobras estão em permanente devir. Aí o rosto aparece em permanente reconstrução, onde o poder se inscreve e uma imagem pronta se subescreve. Até que a experiência dessa investigação transporte para um lugar do dessconhecido. O desafio seria então prosseguir e indagar por outras desterritorializações.
Desconforto. O que é uma escola contemporânea? Mais do que é, o que pode ser? São estas as perguntas que conduzem João Marques Franco a introduzir-nos na ideia de que o professor de artes não deve – porque não pode – levar os alunos ao conhecimento. Somente ao desconforto de lidarem juntos com o desconhecido.
Desafio. Não só de desconstrução se faz a crítica. Também o desenvolvimento de uma escola que enfrente e contrarie poderes políticos, económicos e tradições permite destabilizar. O desafio é lançado por José Carlos Paiva e Rita Rainho. Implicados como estão neste processo, descrevem as práticas de educação artística de Cabo Verde, inscrevendo no leitor um aqui & agora do que está a acontecer na escola M_EIA – Mindelo_Escola Internacional de Arte (Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura), com a promoção da ONG Atelier Mar e projetos associados à Food Design e à cooperativa da escola Agromar Food Design. Na M_EIA, através de um trabalho crítico e constante, envolvem-se os alunos e desenvolve-se a comunidade local. Resiste-se, mas também se reconstroem espaços materiais e simbólicos para o currículo em artes, e para o desejo mesmo de ser artista.
Desmembramento. Peça por peça, Catarina S. Martins escalpeliza, esquarteja e finalmente desmembra um camaleão que, de outra forma, se ruborizaria até se tornar invisível à crítica. Esse camaleão é a metáfora do cidadão do século XXI, enquanto único réptil capaz de sobreviver na selva neoliberal. Distingue-se pela sua capacidade de mudar de cor (adaptando-a ao ambiente), pela extensa, veloz e certeira língua com que caça, por uma dupla visão que abrange os 360º captados em dois olhos que se movem independentes um do outro e por uma cauda preênsil. Como se a vida fosse uma empresa, ela seria governada por esse camaleão, um sujeito flexível, empreendedor, criativo e autónomo. Criado por poderes transnacionais, perfilado por todas as agendas internacionais e concebido nas nossas escolas, esse tipo de pessoa implantado pelo neoliberalismo é governado por duas tecnologias de governamentalidade que o enredam: a criatividade e a liberdade. A racionalidade neoliberal oferece ao sujeito uma narrativa de salvação em que ele é obrigatoriamente livre de escolher, ao mesmo tempo que o impele a ser criativo, no sentido de em que se deve aceitar um destino social de riscos e de superação de uma precaridade infinita. Nem esta liberdade é livre, nem esta noção de criatividade minada por princípio estritamente empresariais se poderia confundir com aquela que urge garantir na escola de artes. Haverá que perguntar, com a autora, se seremos capazes de ser suficientemente livres e desobedientes para resistir a esta ideia de criatividade puramente camaleónica e se teremos a coragem de a desfazer, construindo outra, nossa.
Deserdamento. O ensino das práticas artísticas é concebido por Neus Lozano Sanfèlix a partir de uma primeira distinção entre a experiência artística e a arte. Não nos importa tanto a arte quando o artístico – somente este último se liga à possibilidade de conceber a experiência artística numa prática autónoma e livre para gerar o seu próprio saber. O artigo que encerra estes dez pensamentos reitera assim uma inadequação curricular, tanto ao nível da organização dos cursos quanto de conteúdos e práticas em sala de aula. Pensar um ensino que se desloque da mera produção de objetos para um currículo que se abra para acolher o processo de criação e de experimentação. Para isso, remete-se ao gesto de recusar ativamente a herança disciplinar, dependente e fragmentária, que nunca se poderá coadunar com uma experiência do artístico.
Ana Paz
Como citar:
Martins, C., Almeida, C., Paiva, J. C. de & Assis, T (Eds.) (2018). Derivas - Investigação em Educação Artística | Research in Arts Education, (4). https://doi.org/10.24840/2183-3524_2018_4
A revista Derivas é uma publicação de carácter semestral dos programas de Pós-Graduação em Educação Artística da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e do Núcleo de Educação Artística do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. O objectivo é publicar artigos inéditos, sujeitos a revisão cega por pares, possibilitando um espaço de divulgação de investigação em educação artística. Pretende-se criar um espaço de confronto de perspectivas, que contribua para a problematização e para o debate das tensões existentes nesta área. A revista é aberta à participação de investigadores, de mestrandos e doutorandos e a profissionais ligados à educação artística num sentido abrangente.