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Os textos reunidos neste segundo número da revista Derivas – Investigação em Educação Artística, apresentam-se dissemelhantes.
Os textos reunidos neste segundo número da revista Derivas – Investigação em Educação Artística, apresentam-se dissemelhantes. A razão para, uma vez mais, não se organizar um número temático, prende-se, em grande medida, com a vontade de criar espaços de discussão, necessariamente não consensuais, mas capazes de trazer até este espaço de publicação vozes de autores mais e menos jovens, cuja aproximação se fique apenas a dever à partilha de um comum: a investigação em educação artística. Do ponto de vista da escrita de um editorial, a tarefa revela-se difícil porque a tentação primeira seria a de estabelecer ligações entre textos, forçando uma vizinhança temática. Embora tenhamos assumido o risco de o não fazer, a verdade é que de texto para texto há também comuns que surgem a partir de posturas e posicionamentos diferentes e que acabam por se evidenciar nesta escrita.
Uma das parábolas mais conhecidas da Bíblia é a d’ O filho pródigo. Conta a mesma que um filho depois de solicitar uma herança abandona a casa paterna, à qual viria a regressar, arrependido por ter perdido toda a fortuna, sendo aceite e perdoado pelo pai. A primeira acepção moral desta história, porventura a sua inscrição numa cultura de matriz judaico-cristã e a pastoralidade que nela se fazem representar não são para nós um pretexto de escrita. Antes sim o adjectivo ‘pródigo’ deste sujeito narrativo. Perguntemo-nos se existirá algo de prodigioso na vida desta personagem, quanto mais não seja pela paronímia dos dois termos. Se uma primeira visita ao dicionário nos diz que ‘prodígio’ é algo como “Coisa sobrenatural… Coisa ou pessoa anormal. … [mas também] Maravilha; milagre.” (Figueiredo, 1996, p. 2068); podemos dar-nos conta da enorme divergência com que nos esclarece o dicionário relativamente ao termo ‘pródigo’, pois o filho pródigo não é de todo ‘prodigioso’. ‘Pródigo’, enquanto adjectivo, não convém a este filho por ter voltado a uma casa paterna, por se ter arrependido ou até mesmo por, imaginemos, aceitar doravante os ensinamentos do seu pai. Ele é ‘pródigo’ precisamente por ter saído para o mundo, por ter gasto todo o seu dinheiro, por ter desprezado tudo aquilo que a casa significava. Pois ‘pródigo’ é aquele que “despende com excesso; dissipador; esbanjador; perdulário; desperdiçador; liberal…” (Pinheiro, s.d., 1121).
Entre uma palavra e outra, e depois de um exercício de morfologia que dá conta da constituição destas palavras com raízes em comum (Bailly, A. & Bréal, M., 1898), perguntemo-nos como o ‘prodígio’ fica conhecido na nossa cultura como essa ‘maravilha’ que quase transcende por se eximir da vulgaridade humana. Se ambas as palavras derivam das raízes latinas ‘prō’ e ‘ăgo’, a junção prōd-ĭgo permite-nos compreender que, na composição destas palavras está inerente, e é comum a ambas, a ideia de ‘ir à frente’ e de ‘agir’. Será este então um impulso algo violento porque definitivamente distinto do comum? Suponhamos então que entre as duas palavras – cujas definições derivaram para valores tão diferentes –, se encontre a curiosidade comum de um certo ‘fazer’ além do esperado, próximo à superação de uma condição, tomada à partida como a ‘normal’. Que o ‘pródigo’ partilhe com o ‘prodígio’ apenas aquela conotação que sobressai como irreverência, mas que mantenha o despreendimento moral e material que sobretudo a ele parece respeitar, lembra-nos a pertinência de pensar no poder das palavras que nos conferem a possibilidade de falar, ou adjectivam os nossos objectos de pensamento.
De que forma poderíamos então perguntar se o que é ‘pródigo’ e o que é ‘prodígio’ habitam o espaço discursivo no qual se inscreve a educação artística?
Comecemos por notar a presença da ideia de ‘prodígio’ na história da educação artística e da sua ligação, ainda que simbólica, com a ideia de pródigo no que ela transporta de uma certa ‘irresponsabilidade’. As narrativas de salvação que se inscrevem no pensamento sobre a possibilidade e a necessidade da educação artística inscrevem estes dois movimentos. Por um lado, tendo por esqueleto toda uma herança anterior feita de galerias de genialidade, que não deve desperdiçar, por outro lado, a educação artística alimenta-se da possibilidade que em si mesmo é uma aporia, de gerar génios, embora active mecanismos de rarefacção dessa mesma genialidade.
Um dos mitos mais comuns é o do prodígio, ideia que se torna absolutamente necessária e espantosa, que importa tornar verdade (de um modo científico), que é a da precocidade dos talentos. Todos os prodígios são infantes e, portanto, transportam em si a possibilidade de toda a infância (a irresponsabilidade, a imaturidade, fragilidade, maleabilidade, inocência entre outras propriedades que a psico-pedagogia nela inscreveu enquanto etapa de desenvolvimento) mas, simultaneamente representam os poderes do mundo adulto ainda que sendo crianças, É disso, diz-nos Roland Barthes (2007), “que dá perfeitamente conta a noção bem burguesa de menino prodígio (Mozart, Rimbaud, Roberto Benzi); objecto admirável, na medida em que realiza a função ideal de toda a actividade capitalista: ganhar tempo, reduzir a duração humana a um problema numerativo de instantes preciosos” (p. 222). O prodígio engoliu, assim, duas forças opostas que certamente alimentam também a própria ideia moderna (ainda que de raízes românticas) do artista: a genialidade e o direito à prodigalidade.
É nas heranças do mito da genialidade que o artigo de Ana Paz encontra o seu material de análise. A incursão histórica que nos propõe leva-nos a questionar aquelas que são as ideias hoje mais comuns e dir-se-ia quase fechadas à questão. Uma ‘criança-prodígio’ ocupa o primeiro lugar de um debate que problematiza a necessidade de um ensino artístico, questionando a adequação da Escola às metas descritas por uma determinada potência de conhecimento, que somente um prodígio poderia traçar. Fica assim levantada a questão da permanência da excepcionalidade no ensino das artes, neste caso, da música, onde o discurso da precocidade continua a marcar presença. Como deixar de perceber a propósito de uma figura como a de Pierino a permanência simbólica das figuras excepcionais, no presente, por reconhecer as dimensões impactantes da sua emergência?
O mesmo poderia ser dito a propósito da recente crença na criatividade como motor de novas indústrias. Os discursos que dão corpo a essa ‘nova’ tendência transformam-na numa das novas tecnologias de governo do século XXI. A agenda contemporânea europeia, e não só, constrói o sujeito criativo como um tipo de pessoa flexível e capaz de se lançar perante os desafios e as incertezas que dizem que o futuro comporta (Martins, 2014). Na construção deste tipo de pessoa são criadas abjecções que excluem todo o tipo de comportamentos e formas de ser que não se enquadram nessa normativa do ser criativo. Conceito histórica e culturalmente construído, que emerge com a modernidade e é trabalhado nos laboratórios da psicologia, a criatividade ganha fôlego nos anos 50 e 60, vendo a sua pesquisa massivamente patrocinada pelo Departamento de Defesa Norte-Americano. Buzzword da retórica europeia a partir dos anos 2000, é uma tecnologia de governo que ordena, disciplina e regula a acção e a participação, através da construção de sujeitos que são, acima de tudo, ‘resolvedores de problemas’ no interior daquilo que é o capitalismo contemporâneo. As características que até aqui víamos serem essencialmente aplicadas a artistas contaminaram toda a esfera do trabalho contemporâneo. Criam-se confusões, por via da sedução, que importa esclarecer a partir do próprio campo do artístico.
Também no campo da música, o texto de Marta Terra articula o problema atrás apontado. Centrando-se em projectos educativos da Casa da Música, no Porto, e particularmente no projecto ‘Som da Rua’, levantam-se algumas questões relativamente à mobilização das artes em projectos de inclusão social. Adoptando uma postura essencialmente descritiva de um trabalho no terreno ainda em curso, adivinham-se nós com que a educação artística se debate na contemporaneidade e que se torna necessário desfazer para que as artes, ou a tão em voga criatividade, não sejam instrumentalizadas e travestidas na busca de resolução para problemas sociais.
Dir-se-ia que no afã de socorrer do presente a falha humana ou de articular efeitos maravilhosos – prodigiosos(?) – com a regulação das necessidades apontadas por esse capitalismo contemporâneo de onde emerge o problema da empregabilidade, da inclusão, entre outros, somos lembrados de que a criatividade quando ligada às novas tecnologias, representa com uma outra frescura, uma nova forma de salvação. Assim, a possibilidade de traçar uma visão de um paradigma contemporâneo que abranja o papel das novas tecnologias e dos efeitos dos media digitais na ‘modernização’ das instituições de ensino, situa-nos nas proximidades do problema desenvolvido por Eduardo Morais. Mas quando é já o ensino superior artístico que se debate pela singularidade que propõe ao discurso tecno-determinista, haverá como sustentar a crença de uma educação tecno-prodigiosa no presente e no presente do ensino superior artístico, face às exigências de competitividade, eficácia e criatividade?
Um mergulho no mundo da escola, e especificamente uma escola de artes do espectáculo, mostrar-nos-á que, contrariamente àquilo que se imagina, é no trabalho que os sujeitos se fazem artistas. O texto de Henrique Vaz traz-nos esta questão, ainda que sob a forma da relação professor/aluno (mestre/aprendiz), deslocando a hierarquia para uma relação mais entrelaçada entre o protagonismo de professores e alunos. A análise que realiza, a partir da observação de aulas, de ensaios, de workshops, torna evidente que esse mesmo mundo da criatividade de que falávamos acima não deve ser visto em termos de uma idealização romântica, mas também se torna perigoso quando visto a partir do seu alastramento a todas as esferas do trabalho, como forma de responsabilizar cada um, face a um mundo de competição.
Quando aquilo de que se fala é de um estado de relacionamentos que não se estabilizam num único ponto, então, o entrelaçamento ou deslocamento pedagógico adquirem outros sentidos. Dennis Atkinson procura desenrolar o novelo sensível dos espaços bem recortados do ensino e da aprendizagem quando esta, num contexto quantificador, propicia a urgência de pensar em várias complexidades desses espaços pedagógicos. Perante essas encontrar-se-á na conceptualização de uma ‘força da arte’ uma potência de encontrar meios para fazer frente à tarefa de transformar as figuras de subjectividade e representações discursivas que habitam a priori o ensino artístico. Mas como situaruma ‘força da arte’ na arte contemporânea e pensá-la nos termos e nas possibilidades de um ensino ainda moderno de artes visuais, sem prodigalizar nem prodigiar? De facto, não fizemos ainda o luto da modernidade e, no entanto, deixamos que nos imaginem já no futuro 2020.
Como pensar o presente de uma escola de arte e como entender as suas urgências e as encomendas que lhe colocam às costas? Relacionando esta questão da escola, Helena Cabeleira convida-nos a pensar sobre a dupla questão necessidade/desejabilidade de uma escola de arte no século XXI, questionando a pertinência da mesma no triângulo artista/mundo da arte/sociedade. Afectadas por um discurso da crise (de financiamento, de estatuto, de missão, de identidade) as ‘velhas’ instituições da modernidade confrontam-se com a urgência da sua reinvenção. Transforma-se a academia de arte numa plataforma laboratorial de experimentação de identidades (ainda que muitas delas inventadas para outros modos de ser e de fazer estrangeiros à arte) e padece ainda de uma relação que Helena Cabeleira identifica como sendo de amor-ódio entre artistas e academia. Poderíamos dizer que estamos perante um nó que só uma análise histórica nos permitirá decifrar com rigor. Basta lembrarmos o pintor da vida moderna, de Baudelaire, para percebermos o quanto entre o artista e a escola as relações nunca foram pacíficas. A incompatibilidade que a história nos devolve é toda a problemática do génio e da sua impossibilidade em ser qualquer outra coisa que não aquela ditada pela sua natureza.
Mas é, provavelmente, a partir do próprio fazer artístico contemporâneo, que melhor poderemos entrar na complexidade do mundo artístico e nas suas zonas de resistência e de paródia, ou de ironia, com as políticas neoliberais que chegam não apenas à educação, como à arte, à política, à economia e a qualquer outra esfera que queiramos aqui enunciar. O texto de Fernando José Pereira inaugura outra forma de desconforto, pela alternativa que apresenta na luta que trava face a um excesso que se pressente. Porque já no campo específico da arte contemporânea, Tino Sehgal, sujeito deste texto, introduz numa discussão conjunta aquela que poderia ser a dimensão não-prodigiosa do contemporâneo pela recusa em constituirse como sujeito de qualquer convenção (se assumirmos que o ‘prodígio’ e sua raridade são lei na teoria histórica da arte). Aquele que não conserva o seu património, que dissipa a sua fortuna sem registo. O conceito de des-produção. Que dizer da prodigalidade inscrita no conceito de des-produção de Tino Sehgal? Esta, identificada por Fernando José Pereira como o sentido político e económico da sua obra artística, abre precisamente um caminho quase que involutivo, no sentido de que traça a alternativa a partir de uma recusa. Não da desmaterialização da obra, mas da recusa de participar nos processos de documentação que alimentam o mundo artístico no momento e no para além do acontecimento.
A prática artística, mas agora enquanto investigação, é o problema que acentua a complexidade epistemológica da própria arte quando esta se confronta com o campo científico, e é também o problema para o qual aponta o texto de John Baldacchino no ensaio visual cujo título imediatamente nos informa sobre a sua posição. Partindo da arte como ‘objecto’ de propriedades indiscritíveis no termos mais quantificáveis da metodologia, o texto de John Baldacchino permite-nos partir para a imprecisão com que se esparsa um ideário conceptual de arte enquanto investigação, somente para tentarmos problematizar o lugar desta enquanto produtora de conhecimento. Pois afinal, como poderá a arte, na contemporaneidade, contribuir para o conhecimento senão investigando? Mas por outro lado, como poderá ela fazê-lo, se sujeita de uma epistemologia que a vários títulos lhe não convém? Este textos antecipa um problema que se torna urgente pensar: que políticas, liberdades e utilidades se inscrevem hoje na investigação, numa escola de arte?
Muito além da jurisdição da criatividade do lado da arte, ou da produção de uma tão bem recortada objectividade por parte das ciências exactas, é completamente contemporânea a urgência de tentar perceber como a arte é (ou não é) investigação, e dir-se-ia, com letra maiúscula, pois é também de um contexto e de um lugar de emissão que a questão se compõe. Em ‘investigar’ estará necessariamente implícito o espaço da universidade? Perante tal questão parece, mais do que pertinente, pensar no que será então conceber uma investigação académica, ou por outro lado, uma investigação que provenha da prática artística exercida fora da instituição. Será ela uma investigação com letra maiúscula, e terá ela como se emancipar do discurso autoral, afirmando o seu direito a produzir conhecimento, para além da subjectividade do artista?
Catarina S. Martins e Magda Silva
Como citar:
Martins, C. & Paiva, J. C. de (2014). Derivas - Investigação em Educação Artística | Research in Arts Education, (2). i2ADS/FBAUP e Editora Mais Leituras. https://doi.org/10.24840/2183-3524_2014_2
A revista Derivas é uma publicação de carácter semestral dos programas de Pós-Graduação em Educação Artística da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e do Núcleo de Educação Artística do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. O objectivo é publicar artigos inéditos, sujeitos a revisão cega por pares, possibilitando um espaço de divulgação de investigação em educação artística. Pretende-se criar um espaço de confronto de perspectivas, que contribua para a problematização e para o debate das tensões existentes nesta área. A revista é aberta à participação de investigadores, de mestrandos e doutorandos e a profissionais ligados à educação artística num sentido abrangente.