livro
Este volume transporta-nos para questões da maior importância para todos aqueles que se interessam pela prática e pelo pensamento em torno da chamada arte contemporânea.
E eis-nos chegados ao terceiro volume da colecção “lado B”, uma colaboração frutuosa e necessária do Doutoramento em Artes Plásticas com o Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ADS).
Neste novo volume, o importante artista brasileiro Ricardo Basbaum (que, como os autores anteriores, gentilmente cedeu o texto para esta colecção) transporta-nos, através de dois dos seus muitos textos, para questões da maior importância para todos aqueles que se interessam pela prática e pelo pensamento em torno da chamada arte contemporânea.
Ao contrário dos anteriores, este volume privilegia uma condição, que tanto para o Doutoramento em Artes Plásticas como para o i2ADS, se revela da maior importância. Trata-se de textos escritos por um artista e somente essa condição já seria determinante para os objectivos desta colecção. Contudo, é mais forte e ampla a dimensão desta escolha. Ela corporiza uma das questões mais discutidas no meio: qual é o papel a desenvolver pelos artistas na contemporaneidade? Quais são os limites que estes devem impor? E, finalmente, que singularidades podem trazer estes textos escritos de dentro para fora do território da prática artística? Tudo questões em aberto, mas, também, por isso mesmo, potenciadoras de horizontes mais amplos com que queremos trabalhar e lidar.
Os textos que agora se apresentam têm ainda uma outra dimensão importante nas, também, fundamentais, discussões contemporâneas: vêm do hemisfério sul, vêm de um país que ainda tem abertas feridas que advêm da sua anterior condição de colónia, mas, sobretudo, de um olhar que escapa à centralidade cultural com que estamos habituados a conviver.
Estas são, apesar de tudo, questões genéricas pois as mais importantes o artista coloca nos seus textos. Desde logo, o problema da participação e da designada arte participativa e todos os equívocos que tem gerado ao longo de já algumas décadas. A análise aprofundada e singular que o Ricardo nos apresenta escapa a qualquer equívoco. Sabe bem o que nos quer dizer quando nos fala em arte participativa. Situa o problema a partir de uma pesquisa histórica que permite um entendimento da aproximação visível nos nossos dias entre o território da arte e a indústria cultural. Sente, com razão, que essa aproximação e, em alguns casos, quase fusão, se refugia em mitos e equívocos potenciados por uma mais que gasta retórica de crítica ao individualismo dos artistas. Vinda dos sectores mais profundamente individualistas da sociedade: os teóricos neo-liberais que apresentam uma espécie de anarquismo exterior a qualquer ausa colectiva, mas que em nome individual lhes permite oferecer miríades de possibilidades salvíficas (mais agora com a introdução do cerco digital e do auto-proclamado teletrabalho). Desde os anúncios publicitários com uma qualquer figura bronzeada e bem nutrida a fazer o seu trabalho numa praia paradisíaca até ao extremo do que já conhecemos como selfie-reality em que os softwares de partilha nos permitem retocar os defeitos para aparecermos perfeitos perante os outros. Coloca o dedo na ferida ao levantar os problemas que são inerentes a esta condição de self made man e à correspondente possibilidade “participativa” presente em muitas obras que se reivindicam dessa condição, esquecendo que a simetria entre o autor e o espectador é apenas mais uma falácia.
Refere o autor com acerto no final do seu texto “As práticas artísticas mais interessantes de hoje podem nos levar para mais perto desse paradoxo: mobilizar o outro como uma extensão de você mesmo e mobilizar você mesmo como extensão do outro – onde a alteridade é mutuamente reforçada e onde ‘eu’ e ‘você’ são continuamente substituídos por uma ampla e exterior área de contato. O que nós podemos fazer, senão viver fora de nós mesmos?”
Não por acaso, o texto que complementa o livro usa as mesmas ferramentas. A pesquisa histórica e, desde logo, a recusa dessa espécie de esquizofrenia social em que estamos continuamente envolvidos pelo presente perpétuo que o neoliberalismo nos impôs, como forma de entendimento deste mesmo presente. Ir ao passado, buscar os exemplos de artistas fundamentais como Hélio Oiticica será, por isso, uma estratégia poderosa para que os artistas se consigam situar e, como refere o autor, eventualmente encontrar formas de resistir para que as mudanças porque anseiam nas suas obras possam aparecer, mesmo se podemos reconhecer sem dificuldade que vivemos tempos adversos. E, contudo, como dizia Derrida é na im-possibilidade que se encontra o desafio. Os textos aí estão para ajudar a entender a estranheza da afirmação derridiana.
Terminamos exactamente como no anterior texto de apresentação. Sabemos o quanto isso é difícil, mas, sabemos, também, que para os artistas o fazer saber da arte é uma necessidade da qual podemos, mas não queremos desistir.
Fernando José Pereira
Como citar:
Pereira, F. J. (Ed.) (2020). Ricardo Basbaum. Participação pós-participativa. Tropicalismo, depois: da geleia adversa à adversa geleia. Lado B - Cadernos DAP, (3). i2ADS/DAP. https://doi.org/10.24840/978-989-9049-15-4
Num passado que já parece longínquo, em plana vigência analógica, os grupos musicais pop editavam com frequência os chamados singles. Aí colocavam a música que lhe parecia mais talhada para o sucesso imediato e, logicamente, numa intencionalidade mainstream esta era divulgada e massificada intensamente. Como todos recordam os discos analógicos tinham dois lados (hoje aí estão outra vez…) um denominado A e o outro, denominado B. O carácter secundário do outro lado permitiu, também, que parte importante da experimentação avançada pelos intervenientes activos de então aí fosse colocada. A lógica era simples, só os mais curiosos e atentos iriam virar o disco e escutar o outro lado, o lado B. O tempo veio colocar em destaque toda essa vertente experimental e de risco. Não são raros os casos em que a recuperação se faz exactamente a partir das músicas impressas no lado B. O outro lado aparece, hoje, como o mais interessante, longe da assimilação e trituração comercial a que foram sujeitos os lados A. O seu distanciamento e natural obscurecimento perante os spotlights, apontados ao lado principal, preservaram-nos e trouxeram-nos até nós, hoje ouvintes digitais, como obras primeiras. A metáfora aqui apresentada pretende, antes de mais, ser um ponto de partida para uma reflexão mais aprofundada sobre a premência do deliberado afastamento a que se remetem algumas obras e textos. A sua permanência ausente da crista da onda (metáfora analógica, mas com intencionalidade digital) permite-lhes um grau de risco e de experimentação que não é passível de ser realizado em sistema de recepção mainstream. É sobre eles que queremos reflectir, sobre a sua necessária lucidez, que as protege e distingue da torrente de acomodação e deslumbramento, fundamento último para a sua existência enquanto obras ou textos que querem resistir à actual voracidade e velocidade do novo. Sem intuitos morais de representantes oficiosos de qualquer tempo ou tecnologia, apenas como obras ou textos.