livro

Conversas Desalinhadas

Conversas Desalinhadas é uma publicação que reflete sobre os 5 anos de atividade do Grupo de Estudo Leituras Feministas. Composta por: ensaios escritos e/ou visuais de participantes do grupo de estudo em conversa com textos, atividades e pessoas que deram vida às sessões do grupo; um diagrama da primeira Caminhada das Corpas; um caderno de documentação fotográfica do grupo; e entrevistas às responsáveis pelos espaços alternativos que acolheram as várias atividades.

  • Edição
  • Gabriela Carvalho, Carla Cruz, Danielle Fernandes
  • Ano
  • 2025
  • isbn | issn
  • 978-989-9049-91-8
Conversas Desalinhadas

Editorial

Uma palavra
dita assim,
entre letras
e para olhos:

FEMINISTA

nunca é absoluta. Existe um espaço turbulento entre o desejo de quem diz, os movimentos do seu corpo, as sinapses da sua mente, os ruídos dos seus ouvidos, suas histórias, seu passado antes dessa vida, a invenção da língua e a origem da palavra e as vontades daquela que lê, que escuta na sua cabeça o som da palavra com cor, forma, gosto, cheiro, com a lembrança de um dia ou muitos, com raiva ou fé, com o que acontece nesse exato momento, há séculos e já está acontecendo amanhã.

Há um desalinho, uma fresta, um desmonte entre a estrutura do texto, a gramática da língua e o texto que se reescreve no corpo da leitora. Feito uma travessia turbulenta, sem mapa ou GPS que indique

— Você chegou ao seu destino.

O texto que se forma na língua da leitora, fagocitado pelas suas experiências, traumas e utopias é, muitas vezes, disparador de insurreições. Pode tirar um corpo da inércia alienante e fazê-lo correr por horas sem rumo, pode ensinar uma nova forma de existir ou mais, pode produzir lágrimas nos cantos dos olhos. O que você faz com o que o texto te dá, que precisa ser feito que precisa mudar que precisa existir que precisa…

Antes que já não exista outro jeito de… ?

LEITURAS FEMINISTAS

nunca foi sobre teoria, sobre ler e adquirir conteúdo, como se fosse um acessório que você passa a carregar (muita gente ainda acha que sim). Foram cinco anos de leituras, de encontros, de movimentos dentro e fora da universidade e acreditem se quiser, tem quem ainda ache que é sobre teoria acadêmica.

quem em sã consciência sai de casa num frio absurdo à meia noite para caminhar de madrugada com mais meia dúzia de mulheres porque quer ler um texto?

A academia ainda não entendeu o que diz quando fala em descolonizar o conhecimento. Talvez seja tarde demais quando se der conta.

JÁ É TARDE DEMAIS

Enquanto isso, seguimos lendo com o corpo ativo, nos encontrando em espaços independentes da cidade, nos mobilizando no trabalho, nos ativismos, na vida de cada uma, cada palavra dessas leituras, desses encontros, dessas conversas desalinhadas que brotam do estilhaço intangível entre tempos, gerações, línguas e histórias.

Esse livro é mais uma camada dessa História. Feita de uma pequena parcela daquilo que cada uma encontrou no grupo, naquele momento, naquela noite, nas páginas de um texto, nas ações de uma conversa que decantou e virou outra, viraram outras, viraram imagem, som, viraram discussões com a família no almoço de domingo, viraram términos de relacionamento, viraram mudança de perspectiva, viraram sonho, viraram pesadelo também, viraram grupos de autodefesa, viraram denúncias na PSP, viraram também teses, dissertações, artigos científicos e comunicações em congresso, mas o que importa de fato é que viraram.

VIRAR é verbo que pede ação, que pede mudança de rumo, que faz com que as estruturas se mexam, se transformem.

Afinal, palavra é bicho vivo na cabeça da gente que brinca com ela. Conceito só é fixo pra quem quer guardar ele e chamar de seu. A gente pensa porque tá viva. Vive porque sente. Sente porque tem desejo. Deseja porque acredita que dá pra fazer diferente. E se passamos cinco anos chamando essas leituras de

F E M I N I S T A S

é porque a gente sabe que dentro dessa palavra-vulcão cabe quase tudo e mais um pouco, cabe a mutabilidade necessária para que as coisas sigam pulsando e criando relacionamentos de mais respeito com a vida e com as infinitas formas de viver nesse mundo.

Por isso festejamos com um encontro em forma de papel. Um livro que dê conta de ser uma leitura feminista, uma conversa desalinhada aqui, agora, diante dos seus olhos, mas também do outro lado do mundo, ontem e daqui dez anos. Um espaço em que a gente possa reunir um bocadinho daquilo que aconteceu até aqui e que plante nas leituras que virão outros projetos de fazer mundos e de fazer juntas.

 

Segunda Introdução Tentativa

Queridas,

Parece que foi ontem que nos encontramos num escuro auditório para dar corpo a este grupo. Cheia de entusiasmo e nervosismo, feliz por ver tantas. Em grupos mais pequenos partilhávamos o que nos levava ali. Do meu, ficou-me uma pergunta feita ao grupo após uma afirmação minha, que provavelmente de forma estridente deve ter incluído a palavra foder.

— Por que é que as feministas falam sempre de sexo?

Chocou-me. Deixou-me muda. Seria uma acusação? Era, pois! Uma acusação da sociedade patriarcal que remete o sexo, a sexualidade, especialmente a do corpo e da boca da mulher, ao privado. Ora aí está, por isso as pessoas feministas falam de sexo. Do seu sexo, da sua sexualidade, do prazer. Para mim, não me sai fluidamente, nem o dizer, nem o fazer, nem o prazer. Demasiado tempo remetido ao pecado, a um final infeliz.

Já vos disse que o “Os usos do erótico, o erótico como poder” de Audre Lorde, continua a ser para mim uma dificuldade? Volto a este texto vezes sem conta. Já o lemos juntas. Utilizo-o nas minhas aulas de metodologia. Quero trazê-lo para a minha prática artística. Para a minha vida. Mas a produtividade, o trabalho, o sacrifício, o agradar a gregos e a troianos, e especialmente a eles, toldam-me o caminho. Vocês têm sido um farol nesta escuridão. Os nossos encontros são amorosos, como propôs bell hooks são uma prática deliberada, mas serão também eróticos?. São a vontade de estarmos “menos sós”, como Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa estiveram. São ténues e simultaneamente fortes como o fio da teia de uma aranha. Continuam, continuarão, porque nos atraímos umas às outras como pirilampos, emitindo a nossa luz. Juntas brilhamos mais forte.

3o Ato Desalinhado

Há 5 anos seguimos em desalinho com o entre muros aca dêmico, com a malha do patriarcado, que nos envolve nos mais variados tecidos sociais, e com algo dentro de nós que se move, se rebela e busca a utopia de tensionar até que possamos puxar fios, romper e abrir espaço para novas tessituras insurgentes, desalinhadas e perfeitamente imperfeitas. O Leituras Feministas é este grande ateliê subversivo da palavra e do ato que, ao puxar os fios das nossas certezas, nos convida a outras tessituras dentro e fora de nós mesmas. Ao longo destes anos, podemos confabular sobre estratégias, fazer contato com outras mestras da palavra, da vida, da militância, e de tudo isso junto, em um desalinho que desfaz nós desta grande teia a ser continuamente sabotada e refeita em outras cores e texturas, nos recusando ao lugar de presas e reconhecendo umas às outras na nossa potência destrutiva e criativa de aranhas tecedeiras um tanto peçonhentas e um tanto amorosas.

 

C. Cruz, G. Carvalho, D. Fernandes