revista
Um esforço de partilha pública das escritas que se produzem, não para replicarem o já dito e legitimarem o já feito, mas esforço de quem age na gestão do desconforto, da inquietação e da insatisfação.
Solo cuando reconozcamos esta dimensión de ‘lo político’ y comprendamos que la ‘política’ consiste en domiñar la hostilidad y en ententar distender el antagonismo potencial que existe en las relaciones humanas, podremos plantearnos la cuestión fundamental de la política democrática. Mouffe (2007, p.19)
Inscrevo-me em mais um movimento, de escrita e discussão, propósito de dádiva do que sou capaz de fazer e de escrever (entender) perante o que me cerca, na arte, na educação, na cultura, no ensino de artes visuais, na formação de professores, na investigação em educação artística, nas comunidades que me incluem, no político que tudo comporta e de onde emerge a resiliência e a procura incessante de esclarecimento dos campos de tensão que nos habitam: nessas derivas…
DERIVAS, um esforço de partilha pública das escritas que se produzem, não para replicarem o já dito e legitimarem o já feito, nem aplaudir as tentativas de tornar exemplares e comprovadas as narrativas hegemónicas e as excepcionais práticas que as realizam, mas esforço de quem age na gestão do desconforto, da inquietação e da insatisfação, perante o panorama da acção e da investigação em educação artística, presente e teimoso ainda que impotente para alterar as políticas educativas e culturais que são impostas e que obscurecem o que há-de vir.
DERIVAS, uma superfície que se pretende inundar de debate aberto, franco e agonístico, plano de frontalidade de antagonismos, de confronto, terreno usado por quem o ouse frequentar, espaço público onde os discursos ocultos podem emergir, onde as narrativas hegemónicas são fonte de análise crítica e nunca envaidecidas.
DERIVAS, uma identidade que se amadurece, feminina e democrática, que se identifica pelo que há-de vir, e pelo que a há-de constituir, cumplicidade e partilha da sede de se entender a investigação em educação artística, em si e a partir de si.
Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe em todo o caso que lhe pertence
irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo. Agamben (2010 [2009], p.20)
A actualidade onde nos inscrevemos invoca imediatamente realidades controversas e paradoxais, pela presença de espaços sociais de conforto, abundância e ganância descomedida, em confronto com crescentes lugares de tristeza, vidas de pobreza e retiros desenvergonhados de exclusão. Frequentar o obscuro presente, enfrentar a predeterminação de um futuro apresentado como sem alternativa, ter de assistir ao poder totalitário do capital financeiro e dos dispositivos de regulação dos mercados globalizados e da economia multinacional, mas também dos dispositivos de regulação da cultura e da educação, implica a adopção de uma procura de sobrevivência eficaz e adormecida ou um estremecimento crítico que gere a compreensão partilhável das narrativas paradoxais dominantes e possa esclarecer a acção possível de se construir, a partir desse entendimento político, como governo de si.
Apenas uma consciência da dimensão, natureza e sentido da actualidade, onde a ganância e a usura geram a exclusão e a injustiça, e seja esclarecida a noção da possibilidade e de impotência de transformar a crítica ao sistema político enraizado e sustentado por governos e instrumentos reguladores, em mudança democrática, constituem uma inscrição no contemporâneo.
O progresso civilizacional anunciado, desde finais do século XIX, para o novo século no mundo ocidental esfumou-se, espelho de um sistema político democrático, resultado de um sistema global onde o ‘mundo financeiro’, escondido e incógnito, comanda, move governos, dita políticas e desloca para fora de si as medidas-necessárias para superar os cataclismos financeiros que eles próprios criam.
A promessa das ilhas de utopia transformou-se em promessa do pior (Rancière). Os resultados medidos na dimensão dos excluídos, dos sem-emprego-e-sem-esperança, dos refugiados sem-espaço-e-sem-água, dos resíduos-sem-nome-e-sem-terra, dos novos-remediados, são desesperantes e não desaparecem pelos truques ilusionistas com que nos inundam os meios de comunicação.
São tempos complexos e difíceis os deste início do século XXI, tempos múltiplos, encruzilhados, que obrigam a atenção, escuta e paragem, ao encontro de uma acção esclarecedora, à mobilização de uma disponibilidade plena do corpo e do juízo, perante o que parece distante e o que se apresente como distinto. Onde quer que estejamos, estaremos em 2014, conhecedores das desgraças longínquas, dos êxitos das estrelas e das façanhas impressionantes de nossos artistas, dos sorrisos-falsos-da-tv, das falsidades e populismos dos políticos-profissionais do poder, das procuras em Marte, procurando discernir o que nos é escondido, o outro lado do que nos dizem os ‘especialistas’. Busca-se a possibilidade de ter desejos pessoais e interesses próprios isolados dos discursos do ‘mercantilismo do consumo globalizado’, resistentes aos ‘dispositivos de regulação’, procura-se a capacidade de resposta ao convite à resignação.
É esse particular discernimento, essa observação implicada nas tensões do presente, essa atenção minuciosa, que corresponde ao devir da arte contemporânea e lhe confere a pertinência, que a inscreve no político e a liberta para além das amarras do modernismo, soltando-a das âncoras da formatividade disciplinar, do romantismo terapêutico, do mito da genialidade e da salvação. No contemporâneo é a consciência do presente, o habitar das tensões existentes que lhe confere o pertencimento. Adesão ao desconforto, resistência aos desejos sociais do bem-estar e da comodidade que o ‘sistema’ oferece aos que não olharem para fora de si, a não ser para cima do seu estar-no-meio e se confortarem com o esquecimento da multidão, desses uns a quem não se reconhece a impossibilidade de serem unos.
(…) antes de perguntar qual a posição de uma obra literária perante as relações de produção da época, gostaria de perguntar qual é a posição dentro delas? Benjamin (2006 [1934], p.274)
Dentro do campo da investigação em educação artística, esta inscrição no contemporâneo comporta a urgência de se enfrentarem as ideias e conceitos que se naturalizaram, discernindo na história, em particular do século XX, o que povoa o presente, o que perdura do antigo mesmo transitado para o actual e distinto contexto, e que ancora num generalizado optimismo positivo e salvador o papel e o sentido da educação, da arte, da investigação.
Ignorar a importância do sistema de ensino, como dispositivo de regulação dos sujeitos, para o êxito e manutenção das governabilidades, e confiar na possibilidade libertadora que este possa encerrar, e na construção de cidadãos críticos, definidores de seus futuros e donos de seus desejos, não permite a denúncia do exercício pedagógico, como espaço inevitavelmente escolarizado de exercício de poder, de controle e de punição ao serviço de um intrincado aparelho de exclusão e de reprodução social.
Encare-se o limitado espaço de acção, que seja qual for a dinâmica de aprendizagem promovida, seja em educação artística ou noutro dos espaços fragmentados que o ensino organiza, não adquirem o efeito de profanação perseguido, não autonomizam nem desescolarizam os estudantes para que estes autonomizem os seus comportamentos e cresçam num ambiente propiciador da crítica e da criatividade do ser. Este pessimismo não prescreve nenhum desânimo, apenas afasta a ilusão e o simulacro das possibilidades de ‘salvação pela arte’, e do papel remissor do ensino. Não se desarmem, assim, as intervenções quotidianas e teimosas, de tentativa de suspensão do exercício de poder, de revelação dos mecanismos de regulação que a acção educativa transporta, de esclarecimento das armas de resistência crítica que é preciso afiar para lidar com as narrativas hegemónicas, com os saberes sagrados da academia e com as lógicas de legitimação institucionalizada propagandeadas.
A inscrição na educação artística, corresponde a uma inscrição no contemporâneo, na habitação dos terrenos da discussão agonística e antagónica que povoam a actualidade e que lhe conferem pertinência e sentido à acção educativa desencadeada. Nessa actualidade, a clarificação das ideias e práticas naturalizadas, na dimensão do conhecimento da história que as configura, perde-se ao entendimento dos contextos e do devir, cola-se ao discernimento das possibilidades de acção crítica às narrativas hegemónicas e de denúncia das relações de poder estabelecidas.
As controvérsias que eclodiram no campo da arte nos finais do século XX, visitando os antecedentes históricos da arte na modernidade, alteraram os grandes paradigmas teóricos sobre o espaço social da arte, o papel das vanguardas e a potência da sua eminência, a institucionalização dos mecanismos de mercado e de legitimação, sobre a autonomia do artista e as funções do crítico e do comissário, sem que toda esta tensão tenha deslizado para o interior da educação artística, onde se repetem os discursos antigos.
Continuar a repetir as narrativas de ‘salvação da arte’, o primado da expressividade e da genialidade latente, o efeito terapêutico da arte ou o lugar motivador da criatividade, não permite ultrapassar o perdurar de um simulacro, que confere à ilusão da liberdade o usufruto de uma liberdade insular, excepcional, e redentora das inevitáveis e consentidas ‘agruras da vida’.
Do mesmo modo perdura no ensino artístico o mergulho nos processos de construção do objecto, das linguagens que lhe conferem mérito, ou a ciência e a técnica, desvalorizando-se os modos de construção de relacionamento crítico com o artístico, com a cultura difundida e com as representações da realidade, bem como os modos de construção de significação e de discurso, assim como do prazer dos processos de fazer, de escutar, de ver, de entender o corpo, sem procura de finalização, de consubstanciação.
Insiste-se em não abrir o campo de resistência, da respiração do eu, de suspensão dos poderes que teimam em configurar os sujeitos em tipos determinados, e não se soltam as práticas de intervenção crítica e de performatividade, de implicação pessoal, de valorização do corpo, do sentimento de pertença identitária, de crescimento sem receios de deriva, de desvios, do incompreensível.
In order to embrace the idea of real learning as a movement into a new ontological state through following local truth procedures, and the ethical implications for the pedagogic space of ‘that- which-is-not-yet’, it seems that what is required for pedagogy is a pedagogy against the state. This notion requires some elaboration. Atkinson (2011, p.14-15)
Esta inscrição na educação artística distancia-se das ‘delimitações espaciais’ do campo das ciências da educação, para uma zona de complexificação epistemológica, onde a arte a inunda com as suas intradutibilidades e incompletudes, de uma inteligência inventiva irrequieta, de uma autêntica subjectividade cognitiva, e de um tempo de lentidão. Entende-se assim ser necessário o afastamento da fragmentação disciplinar que enferma o apossamento da educação artística, pelas ciências da educação e pelas ciências da arte, em favor de uma compreensão da inerência metadisciplinar deste sítio, denominado comummente como educação artística. Considera-se, nesse sentido, que a qualidade distintiva da arte, no que se prende com os processos de ‘se entender’, do ‘fazer’ e do ‘conceber’, da metodologia, da sua natureza de pertença ao político, inundam todas as abordagens e actos, alojados na educação artística, e lhe conferem o sentido, quer se trate do ensino artístico, dos modos de transferir para a esfera pública os feitos artísticos, ou do senso dos próprios processos artísticos.
A procura do seu próprio esclarecimento e restrição, exige uma releitura da história que a povoa, entendendo os equívocos transportados por designações meritórias usadas ao longo dos tempos (de onde se destaca a educação pela arte) mas que semearam virtudes libertadoras e que usaram a arte como um instrumento e não no seu substantivo, ou então como espaço de descoberta de génios e de espectáculo.
(…) o inacabamento do ser ou a sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida há inacabamento. Freire (2004 [1996], p.56)
Nenhuma hesitação na afirmação de que a investigação é o terreno de produção de conhecimento e da sua oferta para uma possível discussão pública. Dizer isto, com um olhar na investigação em educação artística e na investigação em arte, aceita o distanciamento desta área emergente da investigação, das construções tornadas paradigmáticas na academia pelo percurso histórico da investigação cientifica, casada com as ciências. A história da investigação como área autónoma de actividade parte das ciências e é a partir daí que se estabelecem os seus fundamentos e modelos que inundam a academia e os padrões de reconhecimento institucionais. Porém, a necessidade de abertura nas academias a ‘novas’ áreas científicas, das ciências sociais e humanidades, foi estabelecendo nos anos mais recentes, outros padrões e o desenvolvimento da metodologia abriu possibilidades renovadas que melhor correspondem a este alargado campo do saber. No entanto, mesmo considerando o reconhecimento recente da cientificidade da educação e de outras áreas do pensamento e do conhecimento, ainda não se clarificou o campo singular do relacionamento da arte e da educação artística com a investigação, perante a presença teimosa do congelamento da investigação com a busca, com a necessidade de se encontrarem soluções e eficácias, de com ela se procurar a descoberta a partir de uma actividade metódica, inscrita numa metodologia clara e alicerçada em saberes homologados. A presença da arte e da educação artística na universidade e a produção de conhecimento que aí se desenvolve reivindica para o espaço da investigação outros parâmetros de reconhecimento e uma aberta disponibilidade conceptual, onde, forçosamente, a arte e o ruído que lhe é próprio, pela sua natureza singular, pela sua inscrição no político, e pelo que ela transporta, de modo resiliente, para dentro do pensamento contemporâneo, lhe legitimam a deriva.
A existência da arte e da educação artística na universidade, resultante do peso que adquirem na tessitura social destes tempos controversos da contemporaneidade, bem como o valor social e político que emana da actividade artística, e a presença valorizada da eminência educativa do artístico, declaram a imprescindibilidade da sua presença na possibilidade de se desenhar o por vir, bem como a urgência de se esclarecerem as novas figuras de reconhecimento da investigação que integra este campo, sem medo do caos, sem medo da desordem e do acaso, sem medo da capacidade humana de se procurarem outros limites.
A obscuridade nos empenha aqui numa região onde as regras nos abandonam, onde a moral se cala, onde não há mais direito nem dever, onde a boa ou a má consciência não trazem consolo, nem remorso. Blanchot (2013 [1959], p.38)
A actividade artística nunca escolheu como aparato de legitimação os meandros académicos da investigação, nem disso precisa por se terem tornado pacíficas as modalidades que lhe são inerentes, sejam de natureza mais conceptual ou intuitiva, envolvam mais ou menos reflexão. A um artista não se lhe pede o estatuto de ‘investigador’, independentemente do seu relacionamento de proximidade ou de afastamento com a sua inscrição nessa actividade. De algum modo é ilícito querer unir a criação artística à investigação, num logro que aparentemente alastra a arte para o terreno da universidade, mas, na verdade, a desvirtua de seu carácter iminentemente subversivo de todas as mordaças, configurações, ou definições que lhe toldem o desespero e a liberdade.
A inscrição na investigação em educação artística, promíscua com a investigação em arte, revela a inscrição numa deriva que lhe procura o modo, que adere à necessidade, tornada urgência, de se esclarecer o seu território, os campos de cientificidade que comporta e a teimosia irreverente que a arte desnuda.
José Paiva
Como citar:
Martins, C., Paiva, J. C., Almeida, C. & Assis, T. (2014). Derivas - Investigação em Educação Artística | Research in Arts Education, (1). i2ADS/FBAUP e Editora Mais Leituras.
A revista Derivas é uma publicação de carácter semestral dos programas de Pós-Graduação em Educação Artística da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e do Núcleo de Educação Artística do i2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. O objectivo é publicar artigos inéditos, sujeitos a revisão cega por pares, possibilitando um espaço de divulgação de investigação em educação artística. Pretende-se criar um espaço de confronto de perspectivas, que contribua para a problematização e para o debate das tensões existentes nesta área. A revista é aberta à participação de investigadores, de mestrandos e doutorandos e a profissionais ligados à educação artística num sentido abrangente.