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Uccellacci e Uccellini: A Leste da Cidade

Para este livro partimos das dinâmicas próprias do Porto, tentando cruzar diferentes perspectivas sobre uma cidade que se arrisca a apagar os vazios não programados da ruína e da informalidade, vazios esses que são tantas vezes as linhas de fuga aos processos económicos de transformação física e social do espaço urbano. Apesar disso, não ficámos presos a uma geografia em particular. Estar ou ir para Leste da cidade refere-se não apenas a um ponto cardeal, mas a tudo aquilo que escapa às amarras dos trajectos fixos ou das direcções determinadas, permitindo repensar livremente o modo como as comunidades se organizam e movimentam, reinventando o território para além dos instrumentos formais do urbanismo, da cultura oficial ou da produção intensiva do capital. Refere-se, por último, a essas forças que vêm do passado, escondidas nas dobras da história, dos territórios e das gentes, e que devemos saber acolher, escutar e interpretar. É por isso que este livro não podia ter outro nome. Os passarinhos e passarões de Pasolini são também os das forças que se movem na cidade: sociais, políticas e económicas.

Uccellacci e Uccellini

Amigos, onde vão? Para leste da cidade?

Uccellacci e uccellini (Passarinhos e passarões, 1966), é um objecto singular na filmografia de Pier Paolo Pasolini. É uma espécie de fábula moderna, uma viagem apeada em redor de Roma, e um regresso ao tempo em que os animais falavam e em que os humanos falavam com os animais. É também um belo exemplo do cinema de poesia a que o próprio Pasolini fez referência num texto já mítico sobre o cinema, a linguagem e a comunicação, onde sublinha que este é fundamentalmente uma língua de poesia na qual prevalece uma violência expressiva e onírica das imagens, uma espécie de estado em bruto da significação, porque o elemento irracional do cinema não pode ser eliminado. Pasolini lembra-nos nesse texto que “não existe um dicionário de imagens”, que não existem imagens classificadas e prontas a ser usadas, pelo que o cinema é sempre o lugar de uma invenção linguística. Se comunicamos por palavras e não por imagens, dizer que existe uma “linguagem específica das imagens” será uma “mera abstracção artificial”. Ora, não existe um dicionário de imagens mas estamos habituados a ler a realidade, a conversar com ela através de imagens, com os pés na terra ou com a cabeça nas nuvens, no complexo exercício da memória ou no mundo dos sonhos. Pasolini vai mesmo mais longe, ao dizer que, diferentemente de formas de comunicação mais instrumentais, a “comunicação visual, que é a base da linguagem cinematográfica, é pelo contrário extremamente rude, quase animal.” A seu modo, Uccellacci e uccellini — com o seu corvo falante e a figura tutelar de Antonio de Curtis “Totò”, ou o sermão aos pássaros e o encontro com a trupe ambulante — é uma fábula construída a partir de alegorias, de quadros dentro do quadro, de imagens dentro do filme, e de um mapa do caminho que se confunde com o próprio caminho, tornando-se expressão desse mundo da memória e dos sonhos que Pasolini associa ao cinema de poesia.

Não apenas pela presença de Totò, il Principe della risata que tinha atravessado o cinema italiano desde os anos de 1930, Uccellacci e uccellini é também um tributo à história do cinema e a figuras como Chaplin ou Keaton. O filme começa e termina justamente com Marcello “Totò” e o seu filho Ninetto caminhando e conversando pela estrada fora, no meio do pó. Primeiro na nossa direcção, para que os possamos ver e ouvir. No final, para longe, para a linha do horizonte que os espera, num plano clássico. E o que haverá de mais cinemático, como acto originário, do que caminhar pela estrada, num diálogo contínuo com o mundo que se expressa através das imagens que o compõem, dessas coisas tornadas imagens e que desfilam em nossa volta?

Totò e Ninetto, numa espécie de road movie anterior ao tempo dos motores, calcorreiam estradas inacabadas e atravessam velhas quintas e campos agrícolas perdidos no meio de pilares de betão, terraplanagens e taludes, sinais da construção frenética que tomou conta dos arrabaldes de Roma e de muitas outras cidades italianas nos anos de 1950 e 1960, terminando o trabalho que a guerra não tinha sido capaz de completar. Nunca chega a ser clara a razão da sua caminhada, que parece mais um pretexto para encontros vários do que um gesto com uma finalidade. A certa altura, em plena curva de um viaduto inacabado, ouvem uma voz:

— Amici, dove andate? Non mi volete come compagno di strada, eh?

Texto extraído de Amigos, onde vão? Para leste da cidade?
Miguel Leal
2023