revista
Que diferença poderá existir nas imagens da arte que potenciem, ainda, a sua própria existência? Talvez a melhor resposta seja dada pelos artistas que, de forma singular e diferenciada, buscam novas possibilidades para as imagens, elas mesmas.
No decorrer da leitura de uma importante revista de arte, um artigo captou a nossa atenção: uma iniciativa na Coreia do Sul propõe um tipo novo de residência artística em condições de encarceramento penitenciário. Primeiro ficámos perplexos, depois começámos a pensar. Em que tipo de sociedade alguém pode necessitar estar encarcerado para poder criar? A condição do presente em que vivemos potencia muitas fugas e de várias espécies, desde os chamados retiros new age, até à pura alienação de um qualquer evento desportivo ou espectacular, passando, obrigatoriamente, por propostas de virtualização da própria evasão. Não por acaso, tudo muito bem recheado de imagens pitorescas, exóticas, atraentes e, contudo, banais. O seu número excede a sua possibilidade de sobrevivência.
Talvez esta proposta carcerária seja uma resposta radical a tal situação. Mas é, também, sinónimo de uma sociedade que se fartou de si própria. Uma sociedade autofágica, como afirma Anselm Jappe.
E, no entanto, continuamos a ir ao cinema, a ir a exposições. Que diferença poderá existir nas imagens da arte que potenciem, ainda, a sua própria existência? Talvez a melhor resposta seja dada pelos artistas que, de forma singular e diferenciada, buscam novas possibilidades para as imagens, elas mesmas. A condição sensível em que se inserem é absolutamente exterior à banalização das imagens contemporâneas. Não se trata aqui do «excesso de significante» de que fala o pensador coreano Byung-Chul Han; esse excesso traz consigo a fantasmagoria de um formalismo já definitivamente ultrapassado. E, contudo, a importância significante das próprias imagens ao opor-se à desrealização hoje operada em larga escala é da maior importância. Não se trata, portanto, de uma apologia do medium, mas de uma situação muito mais ampla: a sua corporização material; Como afirma Didi-Huberman no título de Images malgré tout.
Memória, o último filme de Apichatpong Weerasethakul, coloca-nos uma questão: como explicar aos outros, sons e imagens que temos dentro de nós próprios. Talvez essas imagens sejam, nestes dias de banalização imagética, um refúgio, talvez críptico até, para a existência das imagens.
O artigo das residências artísticas em ambiente penitenciário, levou-me a uma obra do artista belga Francis Alÿs intitulada Albert’s Way, de 2014. Nessa obra, o artista, durante sete dias, no seu estúdio das 9h às 19h, percorre uma distância de 118 quilómetros, a mesma distância dos peregrinos que fazem o Caminho Inglês dos Caminhos de Santiago têm de percorrer desde Ferrol até Santiago de Compostela. Esta acção refere-se também a uma lenda em torno do criminoso de guerra nazi e principal arquitecto de Hitler, Albert Speer, que durante o seu tempo na prisão supostamente caminhou na sua cela uma distância equivalente a uma volta ao mundo. E, claro, já que estamos a falar de significantes, a obra referida era apresentada a partir das imagens capturadas por um conjunto de oito câmaras de vigilância que, colocadas nos cantos do atelier do artista, filmaram ininterruptamente a sua viagem.
Será o que esta residência nos quer dizer: que para sermos criativos, temos de ser privados do excesso de imagens em que vivemos? Que estas nos estão a tornar insensíveis a elas próprias e que o Images malgré tout de Huberman, já não tem capacidade para hoje funcionar como alternativa à razão tecnológica? A socialização do sensível, primeiro, e, agora, a sua virtualização colocam-nos perante estes problemas. Que não são novos. Trazem, contudo, algumas coisas boas no meio do seu turbilhão: remetem-nos para a necessidade inequívoca de pensar e reflectir sobre as imagens.
O que aqui queremos trazer é esse conjunto de sistematizações do pensamento, de modo não hierarquizado. Voltemos, por isso, a Huberman, através de um excerto de um texto publicado na revista espanhola Campo de Relámpagos:
Didi-Huberman observa que, contrariamente a uma certa tradição filosófica que sempre privilegiou o logos, o domínio da razão, é o pathos, ou o domínio da emoção, que nos move, que põe o corpo em movimento, produzindo a abertura a uma espécie de conhecimento sensível e estabelecendo a possibilidade de uma transformação activa do nosso mundo. Para Didi-Huberman, seria um profundo erro filosófico, sintomático de um ponto de vista racionalista e moralizante, opor o pathos ao logos, ou seja, separar o mundo sensível, ainda hoje considerado pela tradição platónica como ilegítimo e ilusório, do mundo inteligível, que seria, para essa mesma tradição, superior. É por isso que o filósofo pôde iniciar o projecto de Images malgré tout, um ponto de viragem na sua trajectória, com a proposta Para saber, é necessário imaginar. Imaginar, apesar de tudo.
Tentamos fazê-lo no conjunto de colaborações que aqui partilhamos, através de uma estrutura que, já de si, é um modelo horizontal no sentido de Huberman.
Imaginar, apesar de tudo é uma condição de liberdade. O personagem principal do filme argentino O Ilustre Cidadão (2017), de Mariano Cohn e Gastón Duprat, refere, a determinada altura do enredo, que existe uma tribo que não conhece a palavra liberdade, nem sequer o seu significado, porque são livres.
A arte (pelo menos alguma), traz-nos, ainda, essa hipótese de viajarmos pela interioridade da utopia da nossa liberdade.
O que a Alix mais quereria seria fazer parte dessa viagem tão encantatória e necessária.
Pelo menos tentamos.
Fernando José Pereira
Susana Lourenço Marques
Vítor Almeida
Alix é um jornal semestral, composto por quatro secções, em que se articulam ensaios visuais produzidos por ex-estudantes dos vários ciclos de estudo da FBA.UP (Câmara), ensaios críticos de história e teoria da imagem, fotografia e cinema (Situação Crítica), recensões de livros, filmes ou exposições de fotografia (Olhar—Ver) e a agenda dos filmes exibidos no âmbito do programa Cinema de Bairro desde 2016 na Aula Magna da Faculdade.