revista

PSIAX #3 — Série II

Como esperar que o momento de clareza e distinção em que se apreende o mundo, um universo ilimitado, se conforme numa vontade expressiva, geradora do ato do desenho?

PSIAX #3

Editorial

Visibilidade do Desenho

Poucas são as atividades humanas cuja teorização apresenta uma dialética tão imbrincada entre duas manifestações, uma interna e outra externa. A ideia no desenho é tanto imagem quanto a sua organização sensorial é representação. Assim o deixou expresso Federico Zuccaro em L’Idea de’ pittori, scultori ed architetti (1607) e também hoje o podemos enunciar, do mesmo modo, neste número dedicado à Visibilidade do Desenho.

Como esperar que o momento de clareza e distinção em que se apreende o mundo, um universo ilimitado, se conforme numa vontade expressiva, geradora do ato do desenho? O desejo de tornar o desenho visível parece uma fatalidade, um escape quer à caducidade da memória quer à ansiedade dos estímulos cotidianos. O desenho é um rasgo compositivo, a expressão de uma dimensão poética cujos traços conduzem os mais atentos à inefável clareza ou emoção. Por conter a intenção e o desvelamento da ideia ele deve ser perfeito. Feito, desfeito, refeito e… apresentado!

A objetificação do desenho dialoga em permanência com a sua dimensão conceptual. A sua visibilidade levanta questões sobre a presença do autor, sobre os procedimentos e técnicas, os seus lugares e propósitos, aproximando ou distanciando o objeto relativamente à ideia. Neste sentido, não se discute apenas a relação entre o gesto e o conceito como, também, os espaços de fruição e de trabalho curatorial. Se contemporaneamente é possível verificar uma grande permeabilidade entre conceito, forma e exposição, tal deve-se ao facto de a autoria do desenho ser partilhada pelo espaço de fruição e de programação que constitui as suas próprias estratégias de visibilidade. Porém, é necessário desenhar para que o desenho se torne visível. No ato do desenho, o tempo revela o que está escondido, e entrelaça-se desta maneira na produção de matéria à qual se vota a curiosidade, para vir a encetar novos sentidos e sentires, simultaneamente heurísticos e projetivos.

O gesto do desenho cria espaço, visibilidade e inaugura a dimensão de partilha da sua ideia. O desenhador transfere para a fruição o fenómeno da experiência do desenho. As marcas, as figuras, as representações gráficas, dadas a uma hermenêutica, permitem um entendimento relativo à experiência de todos os que com elas se relacionam. Mas é neste particular que urge a criação de formas alternativas de relação com o desenho. Neste âmbito, a escrita é uma forma privilegiada dado que contém processos que permitem reconsiderar a experiência visual e/ou estética, ampliando o conhecimento sobre o desenho.

Neste contexto reunimos doze reflexões sobre a visibilidade do desenho. Helder Gomes abre a publicação mostrando como a construção da perceção visual se realiza através da interação de diferentes planos da experiência cultural. O desenho é apresentado como o objeto de uma experiência do mundo que é oriunda da construção poética e literária. No artigo de António Olaio, o desenho resulta de um processo de limpeza do vazio, revelando o potencial metafórico e especulativo inerente ao projeto e às práticas artísticas. Ludmila Almendra transporta-nos para uma reflexão sobre o desenho enquanto experiência subjacente a outras práticas artísticas. Esta detecção tanto no domínio dos processos como dos resultados permite ampliar os limites concetuais do campo disciplinar. Sobre a memória associada ao ato expositivo, o texto de Luís Lyster Franco trata de relacionar a diversidade da documentação, catálogos, fotografias e correspondência escrita, visando traçar o percurso artístico de Carlos Lyster Franco. A partir do desenho como ato e facto, verbo e substantivo, e o seu papel na discussão sobre a natureza da sua visibilidade, Mário Bismarck discorre sobre dois modos de visualização: desenhos abs-cenos e obs-cenos. Ao apresentar um projecto gráfico, Rui Neto questiona a origem do Desenho através das noções de limite e fronteira, mediante as quais se impõe uma certa dimensão de separação e violência entre dois mundos. No texto de Flávia Costa e Paulo L. Almeida, os desenhos dialogam com estruturas arquitetónicas designadas como pop-up. Aqui o desenho é definido pelas qualidades da estrutura e o seu carácter efémero dialoga com um seu símile no desenho, conferindo-lhe uma visibilidade transitória e uma condição híbrida que ao ato icónico associa o gesto performativo. A proposta de Natacha Antão, Vítor Martins, Joana Paradinha, João Cabeleira, Manuel dos Reis e Mónica Faria constitui-se como uma memória descritiva da exposição realizada na Casa da Imagem em Vila Nova de Gaia. Nas páginas que se sucedem renova-se alguma da problemática da transposição do espaço físico para a relação texto/imagem impressa. Nela procura-se representar as diversas componentes e variáveis que constituem, à semelhança da exposição, a coerência e heterogeneidade de uma obra coletiva. O texto de Cláudia Amandi acompanhou criticamente a exposição de desenho de Paulo Freire de Almeida, realizada em 2017. A análise reflete o contexto, o tema abordado, os meios e materiais utilizados, as condições de observação, o registo e o processo de trabalho, bem como o paralelismo da atual produção com produção de anos anteriores. Sílvia Simões e Paulo Luís Almeida desenvolvem sobre a exposição Desenhar na Incerteza um vasto conjunto de questões. A problemática do valor resultante da crescente visibilidade de desenhos operativos de processo, abre um espaço de resistência a atributos convencionais que definem a produção artística e inaugura a expetativa de alteração dos paradigmas de aprendizagem nas artes plásticas. A exposição de desenhos de Nuno Sousa no espaço expositivo RiscoTudo da FAUP constituiu uma experiência que Vítor Silva se propôs a inquirir e compreender. Como tornar possível o diálogo com o passado, com o que resta da vivência e coexistência imaginária de outros tempos e lugares? Como, porquê e para quê criar essas imagens? São questões que procura elucidar dando conta dos diferentes processos de trabalho e exibição. A Visibilidade do Desenho abre-se também a uma problemática afim, colocada por Philip Cabau, e relacionada com o ensino do Desenho. Como assegurar práticas de sobrevivência que permitam resistir à mudança constante de paradigmas e, também, à velocidade de inscrição de novos critérios? Aqui, com justificada pertinência, levanta-se um conjunto de questões ontológicas sobre o desenho e a sua pedagogia filtradas por dois conceitos-chave: ostentação e osmose.

Miguel Bandeira Duarte

Como citar:

Bismarck, M. & Silva, V. (Eds.) (2018). PSIAX #3 série II. FBAUP/i2ADS, FAUP, EAUM. https://doi.org/10.24840/1647-8045_2018

Sobre PSIAX

Porquê Psiax? Psiax é o nome de um dos pintores de vasos gregos que terão introduzido a grande mudança do desenho com a técnica das figuras vermelhas no início do século V a.C. Este é um dos mais notáveis aspectos da arte do desenho e da sua adaptação a uma necessidade tecnológica, empresarial, ritual e social, num dos períodos mais relevantes da cultura grega.

Se nos servirmos de uma analogia com a vida de Psiax na Grécia Clássica, e vivêssemos num período de figuras pretas, como se nos colocaria o quadro de inovação na representação da imagem nos artefactos que utilizamos dominantemente ou que poderão vir a ser utilizados? Ao ser produzido por meios digitais ou manuais, o que se inova e constrói? Como é que se acede a essas imagens? O que as caracteriza e como é que a representação ganha aspectos inovadores ou qualificadores da experiência artística?

A orientação editorial pretende promover e divulgar estudos sobre o papel que o desenho poderá desempenhar no nosso tempo, quer ele se concretize como processo de compreender o mundo, quer como meio de aprendizagem e ensino, ou como elemento caracterizador essencial dos objectos artísticos já existentes ou a criar.

Pretendemos dar a conhecer estudos sobre o desenho como imagem considerando que o desenho como arte plástica, manual ou digital, além de se constituir por um conjunto de elementos típicos e próprios da sua específica condição material, é, acima de tudo, uma imagem que ocupa lugares no universo infinito de outras imagens materiais, foto-químicas e electrónicas que hoje nos envolvem.

Importa ligar o passado do desenho - autores, modalidades, temas, tendências, escolas - com as urgências e o sentido de progresso e de ideologia, com as hipóteses que se levantam, com as necessidades que vão da sobrevivência ao sonho, recuperando a memória longínqua do desenho e conduzindo-a para uma actualidade em que se exigem novos entendimentos de uma arte básica do ser-se humano.

Interessa a publicação de estudos monográficos, analíticos, doutrinais, programáticos, metodológicos e críticos desde que se estabeleça, em qualquer dos âmbitos, uma relação entre o passado e o presente. Isto é, interessa colocar as diversas perspectivas em debate, em sintonia, em confronto, em paralelo, em analogia com os problemas, os esforços, as realidades, as obras e as teorias do nosso tempo, quer no domínio da pedagogia, da teoria e prática do desenho, quer no campo da expressão artística.

A Psiax integra uma chamada internacional de participações e revisão cega por pares. Adotando práticas que visam ampliar os contributos e sua consequente disseminação, reforçando a confiança científica e artística dos conteúdos apresentados, contribuindo para a qualidade da investigação realizada nestes domínios de conhecimento.