exposição
Apologia da Crise (Sobre o Desconforto: Contaminar e Contaminar-se)
Exposição dos estudantes do Doutoramento em Artes Plásticas da FBAUP
- 8 Março 2019 —
- 15 Março 2019
- 6:00 PM
- Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
exposição
Exposição dos estudantes do Doutoramento em Artes Plásticas da FBAUP
Nas palavras de Deleuze e Guattari em “Mille Plateaux” um ponto crítico é um caso ou limite extremo. Um ponto a partir do qual um estado ou condição se transforma num outro estado ou condição. A krisis dos textos de Hipócrates é uma crise da doença, o momento paroxístico findo o qual ou o doente morre, ou o processo de cura inicia-se graças à própria crise instalada. Em entrevista recente Rosalind Krauss afirma, de forma inequívoca, a sua oposição ao “vale tudo” em que se transformou grande parte da produção artística contemporânea como consequência directa da institucionalização vitoriosa da prática da instalação. Refere a autora que o papel da crítica é o mesmo de sempre: examinar o que é importante na prática contemporânea. O crítico move-se em direcção oposta ao que seria a resposta popular. O que, na actualidade, equivale a dizer que está em oposição à prática celebratória da instalação, entendida aqui como o tipo de arte que se organiza segundo a lógica de um agrupamento teatral de objectos num espaço fechado. A autora americana considera esta prática “totalmente fraudulenta”. Portanto, em crise.
A constatação de um cansaço por parte de pessoas insuspeitas — lembremos que R. Krauss é uma das grandes responsáveis pela expansibilidade espacial da arte em direcção a contextos “exteriores” através do já célebre texto “the sculpture in an expanded field” — já se faz sentir há algum tempo. A própria autora já tinha dedicado um ensaio a este tema. O que se encontra em discussão é verdadeiramente importante. A preponderância do espaço na contemporaneidade requer uma atenção reforçada às implicações que daí advêm. O espaço com que nos defrontamos está carregado de ambiguidades que provocam uma flutuação das intencionalidades, isto é, uma deliberada recusa do aprofundamento necessário a uma prática artística que se quer posicionar criticamente. Aqui surge o verdadeiro problema: a homogeneização e proliferação das imagens e objectos a que assistimos continuamente provoca uma derrisão acentuada dos objectivos a que inicialmente a instalação se encontrava vinculada e, assim, assistimos a uma crise profunda da ideia de anormatividade que os artistas do séc. XX tanto privilegiaram. A ultrapassagem anormativa da instalação face à exposição tornou-se, claro, a nova norma…que agora entrou em crise.
A crítica ao medium fechado e pretensamente puro da modernidade permitiu o aparecimento de uma arte que, pelo contrário, se deixa contaminar. A sua relação com a realidade efectua-se em sentido inverso: de fora para dentro.
Contudo, deverá ser clarificado o relacionamento existente entre a “nova” arte da instalação e a noção de medium. Não é a sua recusa que se encontra em jogo, embora a diabolização do termo seja corrente. É, antes, um acrescento de densidade, já não puramente formal, a este mesmo medium que é proposto — aquilo que R. Krauss designa como especificidade diferencial, ou seja, uma diversidade de contaminações necessariamente exteriores que passam a ser componente intrínseca da obra.
Simplesmente, como bem o sabemos, a expansibilidade incontida desta miscigenação de géneros transformou-se numa nova realidade de pura indistinção. Aquilo que aparecia como uma estratégia de avanço perante o encerramento medial modernista é hoje um parente pobre da chamada cultura visual. A sua profusão expansiva provocou uma espécie de auto-imunidade, ou seja, a sua total implosão.
Onde nos encontramos então?
O olhar crítico, potenciador da actividade artística, ao incorporar no seu discurso um relacionamento distanciado terá, necessariamente, que reposicionar-se relativamente à problemática espacialidade contemporânea.
Uma espécie de consciencialização trágica desta interioridade compulsiva (gerada pela totalização global) proporciona uma intencionalidade na deriva endógena em busca de melhores ângulos de intervenção (uma chamada de atenção a uma noção importante de Hal Foster: a “parallactic view”). Uma exigência de atenção que escape largamente à apatia imposta pelo “olhar direccionado”.
Talvez algumas das poucas tarefas que ainda restam à arte contemporânea passem por esta constatação absolutamente determinante: perante o vazio fashion[ ] da produção corrente enredada em cumplicidades, a todos os níveis, com as políticas de socialização do sensível, uma arte reflexiva tem lugar para sobreviver, exactamente por realizar esta nova emergência social: despertar a atenção.
Em plena época de fobias comunicativas (pelo deslumbramento que a tecnologia provoca, sobretudo, a numérica) e de modas várias em torno da ideia de obra como mercadoria, uma consciencialização forte destes problemas requer, antes de mais, um afastamento de toda e qualquer ideia de autodidactismo e, pelo contrário, um envolvimento experimental com os sistemas complexos de pensamento. O que orienta a obra em direcção a latitudes totalmente distintas das articuladas e apoiadas massivamente pelo negócio do ócio (Moraza); com todos os riscos que esta atitude acarreta.
Talvez o repensar desta espécie de ensombramento/sombra que autores como Foster ou Perniola propõem se encontre face a face com algumas das proposições teóricas anteriores, nomeadamente, aquelas que vêm dos pensadores alemães como Benjamin e Adorno. E, aí, introduz-se a discussão em torno da premissa moderna de progresso, agora arremessada com o odor electrificado dos componentes electrónicos e interactivos. Talvez uma ideia de obsolescência ganhe algum sentido, aquela que recusa a velocidade imposta pela lógica sazonal fashion, que tudo torna obsoleto apenas pelo prazer do lucro.
A sombra que paira sobre a obra é tanto maior quanto mais forte é a iluminação que a rodeia (Perniola). Nela se encontra a complexidade e a “soberania”[ ] necessária à sua sobrevivência como obra de arte que resiste e que se distancia internamente, para melhor se deixar contaminar socialmente e para, naturalmente, poder exercer a sua intencionalidade de contaminar.
O que se propõe não direcciona a obra para qualquer referência a algum tipo de formalismo. Antes a uma espécie de reivindicação de uma complexidade para a obra que lhe ofereça as condições para se afirmar como potenciadora de uma reflexão que a posiciona claramente mais para lá da simples fruição. Aquilo que Derrida designa, muito acertadamente, como interactividade diferida, isto é, uma espécie de prolongamento ao regime extático da experienciação estética. No fundo, voltando a utilizar uma das noções fundamentais deste texto, uma intencionalidade declarada numa chamada de atenção.