catálogo
Esta edição reúne obras de artistas que frequentam o programa de doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Com práticas, ferramentas e técnicas muito diversas, une-os a premissa da arte como pensamento sobre si e sobre o mundo.
“The museum is the collection of everything outlived, dead, unsuitable for use; but precisely because of this it is the hope of the century, for the existence of a museum shows that there are no finished matters. That is why the museum provides consolation to everyone who is afflicted, because it is the highest level of development for judicial-economic society. For the museum, death itself is not the end but only the beginning; (…)”
em “The Museum, Its Meaning and Mission”,
Nikolai Fedorov
“Encontrei-o aberto; depois instalei-me nele. Chamo-lhe museu porque era assim que lhe chamava o negociante italiano. Porque razão? Quem sabe se ele próprio a conhece. Poderia ser um hotel esplêndido para umas cinquenta pessoas, ou então um sanatório.”
em “A invenção de Morel”,
Adolfo Bioy Casares
Em a “A invenção de Morel”, romance do escritor argentino Adolfo Bioy Casares, o narrador, perseguido pela polícia, chega a uma ilha que julga deserta e instala-se numa construção abandonada apelidada de museu. Porém, a descrição do local que lhe entretém a solidão leva-nos a crer que se trata apenas de uma casa apalaçada com grandes salões, incontáveis quartos, uma capela… Um dia descobre que não está sozinho. Ouvem-se vozes, canções, aparecem e desaparecem pessoas. Por diversas vezes, cruza-se com os visitantes e, de todas elas, nenhum parece ser capaz de o ver, nem de olhos fitos nos seus. Quando finalmente se resolve o enigma, descobrimos que estas figuras são, afinal, hologramas, imagens tridimensionais projetadas em loop por um aparelho prodigioso capaz de produzir, para além de percepções visuais e auditivas, percepções tácteis, olfativas e gustativas.
A invenção de Morel entende-se, assim, como o museu supremo: lugar não apenas de recordações, mas da ativação dos sentidos, um perfeito simulacro do retorno. Porque o impulso de arquivar e preservar, tão característico da civilização ocidental, ecoa, afinal, um desejo de imortalidade, talvez até uma réstia de esperança na ressurreição que os credos religiosos garantiam antes de nos tornarmos ateus. De certa forma, podemos olhar as instituições museológicas como herdeiras legítimas das instituições religiosas pois cumprem um projeto para iludir a morte através da manutenção da memória. Não é por acaso que, por exemplo, os filósofos cosmistas, militantes da possibilidade da vida eterna, se dedicaram a reformular a missão do museu precisamente no sentido de promoverem um regresso não simbólico, mas efetivo dos nossos antepassados.
A ideia que subjaz a criação de uma casa-museu será, talvez, aquilo que de mais próximo existe da invenção de Morel. Uma casa musealizada presta homenagem a uma determinada personalidade, mas, acima de tudo, evoca e invoca a sua presença através das salas e objetos usados e gastos de um quotidiano de outrora, preservado em todo o seu anacronismo como se de um portal para outra dimensão se tratasse. Assim se apresenta a Casa-Museu Abel Salazar, com as suas feições novecentistas estranguladas entre vias rápidas de alcatrão e os seus três pisos ainda decorados ao gosto do patrono.
“When Activity Becomes Art – 2 [Diálogo]” reúne obras de artistas que frequentam o programa de doutoramento em Artes Plásticas da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Com práticas, ferramentas e técnicas muito diversas, une-os a premissa da arte como pensamento sobre si e sobre o mundo. Nesta exposição responderam ao desafio de ocupar a Casa Museu Abel Salazar, um lugar onde impera uma biografia, veiculando não só a história de um homem, mas todo o período que lhe foi contemporâneo. Os artistas convidados vieram acordar os fantasmas da casa e estabelecer um diálogo com as suas memórias. Daqui resultaram uma série de propostas site-specific que, tal como os misteriosos visitantes do romance de Bioy Casares, perturbam a sacralização do espaço enchendo-o de objetos, sons e imagens inesperados.
As interpelações ao lugar são bastante distintas, se algumas obras, como o jogo de xadrez de Ivan Postiga ou o banquete de Liliana Velho, reivindicam o espaço doméstico como se de hóspedes se tratassem, outras, como os vídeos de Aurora dos Campos ou a peça de Maria Ramos assumem a sua atual missão museológica. Outras, ainda, como as instalações de Jerónimo Rocha ou Rui Coelho Santos, interferem, mais ou menos sorrateiramente, com as rotinas espectrais da casa.
Em todos os casos, são dadas a escutar às paredes da antiga morada de Abel Salazar novas intrigas que espelham uma sociedade profundamente diferente daquela que as ergueu.
“When Activity Becomes Art – 2 [Diálogo]” corporiza uma viagem no tempo, um confronto entre épocas, e torna evidentes, pelo contraste entre a vida e obra de um pintor ainda pré-moderno e os nossos contemporâneos, as transformações sociais e políticas que subjazem a toda a história da arte.
Vera Carmo