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Ao organizar “When Activity Becomes Art”, perante um grupo tão heterogéneo de propostas socialmente comprometidas, importa questionar se este lugar inexpressivo hoje reservado à arte, não é também o lugar onde se encontra encurralado todo o pensamento?
O encontro da obra de arte com o seu público nunca foi, ao que se sabe, fortuito. É sempre um encontro sujeito a mediações de várias ordens. Outrora, cabia ao rigor das grandes catedrais, ou dos palácios, circunscrever as relações estabelecidas. Atualmente, mais do que ao espaço arquitetónico por si só, é à exposição, enquanto formato já convencionado, que cabe esse papel, em moldes certamente mais diversos, mas igualmente prescritivos.
O gesto de selecionar e organizar um conjunto de obras em cumplicidade num espaço, implica um discurso que as contextualiza e até, por vezes, instrumentaliza. O potencial da arte como ferramenta de interlocução é explorado extensivamente pelo exercício da exposição desde, pelo menos, a sua institucionalização. Lembremo-nos como Dominique Vivant-Denon – o primeiro curador do primeiro museu europeu, o Louvre – resguardou dos olhares dos visitantes todas as obras passíveis de assombrar os grandes mestres franceses com o objetivo de fazer eco das pretensões da república como o culminar da evolução das sociedades humanas.
Nos antípodas das exigências institucionais, surge a tradição dos salões dos recusados ou dos independentes que se caracterizam pela ruptura com a estética e, consequentemente, com as convenções sociais vigentes. Estas mostras, organizadas pelos próprios artistas e, mais recentemente, pela figura do curador independente, tiveram um papel fundamental, não só na História da Arte, mas como veículo de denúncia ou contracensura em momentos de repressão e instabilidade social.
Quando, em 1969, Harald Szeeman organizou a exposição “Live in Your Head – When Attitudes Becomes Form: Works – Concepts – Processes – Situations – Information”, uma série de questões estavam a ser amplamente discutidas devido ao aparecimento de propostas artísticas que priveligiavam o conceito e a ação em detrimento do objeto para contemplar. Reza a história que a ideia para “When Attitudes Becomes Form” surgiu durante uma visita ao atelier do pintor Reiner Lucassen, de quem o, ainda anónimo, Jan Dibbets era assistente. Generosamente, Lucassen perguntou a Szeemann se não se importava de ver também a obra do seu ajudante e Szeemann encontrou Dibbets a regar erva plantada sobre o tampo de uma mesa. O curador decidiu de imediato: “Okay. I Know what I’ll do, an exhibition that focuses on behaviours and gestures like the one I just saw.”
“When Attitudes Becomes Form” foi a primeira exposição a apresentar obras concetuais na Europa e a trazer para a ordem do dia no velho continente a questão da desmaterialização do objeto artístico – expressão cunhada por Lucy Lippard e John Chandler num artigo publicado na revista Art International no qual afirmavam:
“The studio is again becoming a study.” Foi de facto este desenvolvimento que potenciou a organização, muitos anos mais tarde, de uma possibilidade durante tanto tempo distante e inexistente: a possibilidade de os artistas terem o seu próprio esquema organizativo de estudos pós-graduados.
A exposição que agora nos ocupa, apresenta obras de um grupo de artistas que têm em comum o facto de desenvolverem investigação no âmbito de um programa de doutoramento. Nesse percurso académico, a sílaba tónica é colocada no estúdio, ou seja em tudo aquilo que permeia a ideia da obra e a obra feita, emancipada do seu autor. Pensa-se, pois, a atividade artística e não a obra de arte, ou, mais precisamente todo o conjunto de atividades que levam a ou se transformam em arte. Não se circunscrevendo, contudo, ao universo da Arte Conceptual, mas evocando o conjunto de “Trabalhos – Conceitos – Processos – Situações e Informações” que constituem o útero que nutre qualquer obra.
Assim, as obras em exposição convivem sob o signo de uma premissa: são fruto de um momento particular na biografia dos seus autores caracterizado pela exigência de reflexão sobre a sua posição enquanto criadores no mundo contemporâneo. Daqui resulta que as mesmas devem ser entendidas como elementos de uma engrenagem ainda em construção e verificação. Não queremos com isto dizer que estamos perante exercícios, experiências, esboços ou apontamentos, mas ape- nas sublinhar o seu carácter conscientemente intercalar.
Este processo de tomada de consciência é evidente na total ausência de propostas de natureza contemplativa pois, ainda que sobre assuntos diversos – e de modos distintos – todos os artistas provocam o espectador em direção a um diálogo alocado na realidade além-arte e fundeado em questões permentes do quotidiano. Nas obras de Aurora dos Campos, Oscar Alaya ou Luís Baltar está presente a reflexão sobre a vivência do confinamento, a ansiedade provocada pela solidão, a repentina subtração do exterior e a igualmente súbita omnipresença do ambiente virtual. Já Maria Regina Ramos, Liliana Velho Rui Coelho dos Santos e Tomás Ribas, debruçam-se sobre as diferentes relações e rupturas entre o ser humano e o seu meio ambiente, evocando, inevitavelmente, a crise ambiental que hoje enfrentamos. Questões relacionadas com a tecnologia contemporânea versus técnicas vernaculares, a obsolescência ou o arquivo são tranversais às propostas de António Régis da Silva, Ivan Postiga ou David Lopes. Estas questões são, ainda, tangenciais ao trabalho de Jerónimo Rocha e Luís Miranda que escolhem atuar de modo site specific, recuperando a memória da Casa das Artes como lugar de encontro com o cinema. Finalmente, Martín Molin e Óscar Malta posicionam-se no espectro do artivismo.
Nos anos sessenta, “When Attitude Become Form” provocou o escândalo e a demissão de Harald Szeemann. Nos dias que correm, dificilmente uma exposição é recebida com pouco mais do que indiferença. Qualquer provocação, demanda ou reivindicação é absorvida por um sistema kafkiano que tudo valida para tudo neutralizar. Em O Livro de Imagem, Jean Luc Godard afirmava “No activity becomes art until its time is over”. Ao organizar “When Activity Becomes Art”, perante um grupo tão heterogéneo de propostas socialmente comprometidas, importa questionar se este lugar inexpressivo hoje reservado à arte, não é também o lugar onde se encontra encurralado todo o pensamento? Será a academização do gesto artístico o derradeiro ato de aquietação de todas as vozes dissonantes?
Num mundo global em rede, é ingénuo pensar que não somos, em maior ou menor medida, coniventes com aquilo que desaprovamos. As vanguardas de sessenta foram, há muito, institucionalizadas, e com elas as possibilidades de uma prática artística de guerrilha. Cabe aos artistas contemporâneos a árdua tarefa de refletir e discutir “a partir de dentro”. Afinal, citando Fernando José Pereira, diretor do ciclo de estudos que nos trouxe aqui hoje: “Numa sociedade de superficialidades várias, o que haverá de mais disruptivo que o ato reflexivo de pensar profundamente e, ainda, conseguir transformar esse ato em obra?”
Vera Carmo