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Modos de (Co)Existência: Espaço Confinado, Condição Global, Resistência

A publicação pretende avançar a noção de “modos de existência” de Bruno Latour para reflectir sobre possíveis ‘modos de (co)existência’ perante a consciência de que, nas condições vivenciais recentes, a noção de resistência se intensificou.

Modos de (Co)Existência (PT) Modos de (Co)Existência (EN)

Editorial

A publicação pretende avançar a noção de “modos de existência” de Bruno Latour para reflectir sobre possíveis ‘modos de (co)existência’ perante a consciência de que, nas condições vivenciais recentes, a noção de resistência se intensificou. Este conjunto de textos e ensaios visuais surge, assim, como forma de congregar diversas posições e formas de encarar a ideia de resistência através de noções de co-criação, reconfiguração espacial, poéticas do quotidiano ou a fragilidade de uma múltipla condição ecológica. Num ano em que o espaço público como o conhecíamos se alterou, em todas as frentes, da psicogeografia dos nossos quotidianos aos modos de trabalho, a noção de uma condição de globalidade versus consciência do contexto imediato mudou radicalmente. Ao mesmo tempo, o trabalho que os estudantes do Mestrado em Arte e Design para o Espaço Público na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto realizavam naquele período foi profundamente afectado pelo confinamento e pelas alterações do acesso a pessoas, instituições e lugares, imprescindíveis para a realização dos projectos em curso. Não tendo havido exposição de finalistas para o conjunto de estudantes que finalizavam o Ciclo de Estudos e tendo-se afigurado necessário reflectir sobre modos e vivências, do pensamento às práticas artísticas, na perspectiva da afectação por aquelas condições sociais e pela sua ultrapassagem, a ideia de realizar um livro surgiu como forma de concretizar ambas as frentes.

Com contributos de investigadores tanto integrados como colaboradores do i2ADS — Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, bem como de outras instituições internacionais, a publicação integra diversos olhares que actualizam a reflexão para uma ontologia da experiência pós-pandémica e dos seus modos de resistência. A edição possui ainda contributos de estudantes de doutoramento bem como de antigos estudantes de mestrado, articulando a investigação entre diferentes níveis de estudo pós-graduado e gerando oportunidade de prosseguimento de investigação e de produção de conhecimento para os estudantes daqueles níveis. Face à diversidade de vozes, e embora no geral se tenha optado por seguir o Acordo Ortográfico de 1990, a língua portuguesa na grafia anterior àquele acordo foi mantida neste Editorial e no meu texto “Acordar do outro lado: da experiência da suspensão à reconfiguração das coreografias do quotidiano”, bem como nos textos de Miguel Costa “Entre plantas daninhas: observações e experimentações sobre uma condição menor de paisagem” e de Miguel Leal “Bird’s-eye, o silêncio dos pássaros”. O texto de Aurora dos Campos “Quotidiano / Cotidiano” e a descrição de projeto de Talitha Gomes Filipe “Entre Corpo e cidade: arquitectura incompleta e experiência multissensorial” aparecem em português do Brasil, tendo sido mantida a língua espanhola na forma como aparece nos respectivos textos originais de Federico L. Silvestre “Error y coexistencia: notas para una teoría de la concreación” e de Holga Méndez Fernández “Ensayo para una ecología de la resistencia poética”. Todos os textos figuram também em Inglês.

A publicação pretende promover uma reflexão que importa a outras áreas da sociedade para além da academia onde é gerada, debatendo as mútuas influências entre situações sociais, a prática artística e o pensamento crítico.

As descrições intimistas de Aurora dos Campos transportam-nos para as sensações e ambiente vividos em confinamento. A sua posição entre — entre línguas como expressa o seu título “Quotidiano / Cotidiano”, entre muros, entre países e continentes — atravessa memórias pessoais e situações familiares domésticas e coloca-nos perante a nossa própria consciência vivencial numa reconstrução que importa recolocar criticamente conforme os momentos vividos na pandemia se vão afastando no tempo. Jorge Marques em “(Re) construir a atenção, o mundo como uma fotografia de arquitetura”, reconstrói de forma sugestiva as imagens dos lugares que de repente apenas podemos ver na mediação de ecrãs, olhados numa espécie de fascínio temeroso. Para os estudantes, o trabalho de análise espacial, que Jorge Marques com eles desenvolve habitualmente, passa para uma dimensão projectiva em vez de imersiva. Interrogamo-nos sobre o que esta passagem faz à nossa noção de pertença aos espaços que habitamos em conjunto. Que colectivo se desdobra de uma vivência fraccionada por dispositivos de mediação? O que fazer com a poética assustadora de um espaço esvaziado das coreografias do corpo? Como lidar com a separação entre a observação e a experiência dos lugares?

Federico L. Silvestre em “Error y coexistencia: notas para una teoría de la concreación” propõe uma reflexão entre o especulativo-filosófico e o errante-poético que nos leve a pensar a ideia de co-criação (concreación), propondo a necessidade de ultrapassar uma noção de “comunidade inoperativa” ou “multiplicidades disjuntivas” para chegar a uma outra filosofia da criação. No texto “Práticas espaciais como preservação experimental: entre o visível e o ecológico”, Beatriz Duarte e Inês Moreira apresentam uma abordagem à cultura material do ponto de vista de um entendimento da própria ideia de heritage no seu conflito crítico com a ideia de preservação como é operada tradicionalmente, propondo formas de reavaliar e ressignificar o resíduo e consequentemente o passado que nele se inscreve, visível ou invisivelmente. Em “Dispersão pós-digital” Clarisse Coelho Pinto procura caracterizar aquilo a que chama uma indiferença à temporalidade da forma como acedemos a conteúdos e integramos o nosso contexto na experiência de comunicação actual. Clarisse Coelho Pinto coloca a dispersão ontológica como uma inevitabilidade da condição corpórea que nos divide e, principalmente, nos devolve sempre ao ponto de onde partimos para aceder à comunicação, como uma reverberação inescapável. O meu próprio texto “Acordar do outro lado: da experiência da suspensão à reconfiguração das coreografias do quotidiano” pretende especular sobre uma aproximação à ideia de reconfiguração da experiência estética à luz das alterações de espacialidade das condições do quotidiano e o seu impacto nos modos de produção da prática artística. Miguel Leal em “Bird’s-eye, o silêncio dos pássaros” propõe uma reflexão, sugestivamente apoiada por imagens aéreas, sobre a forma como a condição pandémica, através do reverso da mobilidade sobre os seus dispositivos primordiais — aviões ou cargueiros — revelou as armadilhas da verticalidade do olhar que se globaliza. O texto de Holga Méndez Fernández, “Ensayo para una ecología de la resistencia poética”, oferece uma espécie de respiração através da procura de definir a palavra resistência. Apanhada entre duas línguas — português e espanhol — a narrativa opera numa estrutura poética solta, pontuada por referências filosóficas e consciência política. “Entre plantas daninhas: observações e experimentações sobre uma condição menor de paisagem” é o título do texto de Miguel Costa para quem a resiliência das plantas espontâneas revela, no período pandémico, uma espécie de libertação da dominação humana que uma urbanidade de controlo exerce sobre o mundo vegetal fora do planeamento paisagístico. O seu texto propõe uma história destas plantas entre odiadas ou desejadas, e movimentadas pelo planeta ao longo do tempo.

A publicação apresenta um projecto de pesquisa “Entre Corpo e cidade: arquitetura incompleta e experiência multisensorial” realizado por Talitha Gomes Filipe no âmbito do Mestrado em Arte e Design para o Espaço Público. É uma tentativa de analisar o espaço público através das suas invisibilidades numa transposição metodológica experimental de procedimentos típicos das ciências da biologia para visualizações espaciais, comentando ao mesmo tempo sobre a hierarquia estruturante de políticas urbanísticas impositivas.

Os ensaios visuais apresentam abordagens conceptuais às problemáticas centrais à proposta editorial a saber: a nossa condição de sujeitos a vigilância expressa pelo próprio conceito de panóptico no ensaio visual colectivo “Mapping Invisibility: a possibilidade de ver, na impossibilidade de estar”; a conexão entre o geográfico/político e o pessoal operada pelo deslocamento entre continentes — Europa/América no ensaio visual “América” de Carolina Drahomiro; através de uma visualização do mundo sob uma crise sanitária em “Território Sustenido (paisagem)” de Rodrigo Paglieri procura a passagem da possibilidade do encontro a uma ideia de paisagem crítica contemporânea. Na selecção de projectos de estudantes pretendeu-se trazer para a publicação trabalhos que, não sendo representativos do que foi produzido naquele ano lectivo, assinalam pesquisas conscientes de uma posição no mundo — e um mundo subitamente fragilizado por uma ameaça inicialmente desconhecida — traduzida por diversos meios artísticos e procedimentos experimentais.

Esta publicação aparece em sequência de ajustamentos implícitos às condições em que o espaço público passou a ser vivido durante e após os períodos de confinamento, ajustamentos que justificam as reflexões que a própria produção de um livro instigou.

Após os ajustamentos que implicaram uma transição para telepresença, este livro pretende resgatar a fisicalidade da página impressa, a sua disseminação física fará, quem sabe, parte do resgate do tacto, da presença, da experiência de uma respiração conjunta, que a nossa consciência pós-pandémica haverá de restaurar com o tempo.