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Desajustados #8 reúne textos do I Encontro Perspetivas Feministas na Investigação, sob o tema O cuidado como ferramenta de pesquisa: caminhos sustentáveis para a criação artística.
Nos dias 04 e 05 de setembro de 2024, aconteceu no MIRA FORUM, no Porto, o I Encontro Perspetivas Feministas na Investigação, que nesta edição trouxe como tema O cuidado como ferramenta de pesquisa: caminhos sustentáveis para a criação artística.
O encontro nasceu da necessidade de promover a sustentabilidade nos modos de vida, pesquisa e produção artística e científica, tendo o cuidado como eixo central. Discutimos como a adoção de uma perspetiva feminista nos meios artístico e acadêmico passa necessariamente por um processo emancipatório, rompendo com os métodos e relações patriarcais que historicamente fundamentaram essas instâncias.
A Economia do Cuidado, escrita assim, com letras maiúsculas, pode soar como algo distante, abstrato, até utópico ou ideológico. Mas, na verdade, é justamente ela que sustenta, de maneira invisível e subordinada, tudo aquilo que se viabiliza como produtividade. A carga do cuidado, antes silenciada, começa a ganhar visibilidade à medida que as mulheres ocupam ativamente os espaços públicos, e as questões de conciliação entre trabalho e vida se tornam inegáveis. Assim, o que antes era visto como doméstico – ou melhor, domesticado – passa a ser reconhecido como uma questão política.
Falar de cuidado é falar também sobre condições de trabalho, dinâmicas familiares, práticas de sexualidade, experiências de solidão e coletividade, intersecções de raça e classe, violências, silenciamentos e, sobretudo, sobre a recusa à resiliência como única saída. O cuidado não é apenas uma questão de afeto, mas de interesses, estratégias, acessos, oportunidades e possibilidades. Para quem interessa a promoção de espaços de cuidado?
O evento se pautou na urgência de criar condições que favoreçam espaços seguros e sustentáveis para o cuidado, promovendo uma ética que vá além do discurso e se manifeste na prática. Foi pensado como um espaço de troca e fortalecimento, estruturado em rodas de conversa, em vez de um lugar de mera legitimação dos métodos e vocabulários da ciência hegemônica – uma ciência do Homem e do Capital. Ao propor o cuidado em coletividade, o evento em si já se configurava como uma prática de cuidado, porque visava acolher, escutar e agir. Mais do que um debate teórico, foi um espaço de articulação entre artistas, pesquisadoras e agentes interessadas no tema. Um espaço de construção e de resistência.
Ao longo desses dois dias, tivemos diversas falas e performances que trouxeram perspectivas múltiplas e complementares sobre o tema. Estes dois volumes que agora se apresentam nasceram dessa escuta. Eles não seguem um modelo fixo; ao contrário, assumem formas distintas, moldadas pela natureza dos próprios materiais que os compõem. Essa escolha editorial não é uma falha de unidade, mas uma aposta na diversidade como método. “Diversas, mas não dispersas”: foi assim que optamos por seguir.
O primeiro volume reúne minha fala de abertura e a conferência de Isabella Valle. Iniciei minha fala trazendo reflexões sobre minha trajetória profissional e sobre o significado daquele momento. Como nela já trago, em suas linhas e entrelinhas, uma escrita incorporada do tema em questão, achei importante compartilhá-la aqui — não apenas como registro, mas como uma forma de nos aproximar ainda mais do que foi esse evento. Este texto pode parecer um relato pessoal, mas não se enganem: nele se entrelaçam estruturas nocivas, situações de sobrecarga, exclusões, dificuldades de acesso – questões que são coletivas e estruturais, e não individuais.
A conferência de Isabella, A vivência do cuidado como método de despatriarcalização na criação de pensamentos, não apenas inaugurou o encontro, mas atravessou e reorganizou tudo que veio depois. Ao tematizar o cuidado como método, Isabella não apenas denuncia estruturas patriarcais que nos exaurem, mas propõe alternativas: despatriarcalizar como verbo em movimento, gesto cotidiano e horizonte ético. Seu texto é denso, ritmado, comprometido — ele mesmo uma prática de cuidado. No momento em que terminou sua fala, um silêncio cheio de camadas tomou o espaço. Silêncio como pensamento. Silêncio como deslocamento. Silêncio como transformação.
O segundo volume reúne as vozes de Danielle Fernandes, Letícia Maia, Nara Rosetto e Helena Maria Cosi. Em registros distintos — ensaio, relato, evocação poética e reflexão crítica — essas mulheres partilham suas práticas e investigações, bordando juntas uma constelação de perspectivas feministas sobre o cuidado como gesto criador. Os textos falam de corpo, docilidade, território, educação, toque, tradição e subversão. São escritos que performam o que propõem: práticas de atenção, escuta, experimentação, presença.
A forma da publicação — dois cadernos justapostos, que se encontram — espelha também o que aconteceu ali: múltiplas entradas e saídas, vozes diferentes que constroem juntas. Cada texto tem sua densidade própria, mas entre eles há uma costura, um pacto silencioso. Estes volumes não buscam representar o todo, mas dar visibilidade a partes potentes. São fragmentos que se oferecem como sementes, como registros, como continuidade. Importa também dizer que algumas das mulheres que participaram do encontro — com falas, ações, presenças marcantes — não conseguiram transformar seus gestos em texto a tempo desta publicação. Esta publicação também as escuta. Carrega seus nomes, suas contribuições, seus ecos: Karina Ramos, Renata Gaspar e Coletivo Afreketê.
Esta não é uma ausência, mas uma presença diferente: parte do tempo que o cuidado exige, das condições desiguais em que criamos, vivemos e trabalhamos. Que esta publicação seja também uma forma de continuidade para as suas vozes e presenças.
Cuidar, escrever, partilhar: tudo isso leva tempo. Tempo de escuta, tempo de elaboração, tempo de pausa. Estes cadernos respeitam esse tempo — e nele se inscrevem. Que possam circular como convites para outras rodas, outros encontros, outras formas de pesquisa e de convivência. Que sigamos, juntas, semeando feminismos e cuidados.
Marina Gallo
Junho 2025—
A série ‘Desajustados, Coleção de Textos Falados’, que o i2ADS edições publica, por iniciativa do IDENTIDADES_coletivo de ação/investigação, assumida numa forma informal e selvagem, apenas pretende espalhar na forma escrita alguma das oralidades oferecidas em eventos diversos que a FBAUP e o movimento intercultural IDENTIDADES acolheu e que assim sobrevivem ao esquecimento. Outros números surgirão.