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Nesta publicação abordam-se as produções de três artistas que despontaram na década de 1970, no Brasil, nas quais se pode identificar tanto nas suas obras quanto nos seus textos seminais, a noção de circuito e de inserções em circuitos: Cildo Meireles, Waltércio Caldas e José Resende.
Do fundo da sala seguia com o olhar a sua voz. Recordo-me das minhas aulas de antropologia cultural durante os anos de formação acadêmica, um tempo em que os ensinamentos da professora ainda ecoam em minha mente, transformando-se em memórias indeléveis. Ela proclamava, com convicção, que o Brasil não era uma mera consequência do curso da história, mas sim uma nação concebida, imaginada pelas mentes de artistas e intelectuais cuja obras possuíam um ideal de identidade nacional e um projeto estético de nação. A afirmativa da Profa. Selma Sena não era mera especulação, ela estava fundamentada na crucial influência que os artistas e escritores exerceram sobre a vida social brasileira no século XX ajudando a criar um imaginário de Brasil, um imaginário do que seria brasileiro. Nomeadamente ela se referia a trajetória dos movimentos artísticos iniciados com a seminal Semana de Arte Moderna de 1922.
De facto, em uma análise concisa, é a partir desse evento que desdobram-se inúmeras consequências decorrentes dos princípios estabelecidos desses primeiros modernistas, cujo impacto e importância se estendem por um longo período, manifestando-se ora por meio de negações, ora por meio de reafirmações.
Durante as décadas de vinte a quarenta, testemunhamos o florescimento do modernismo brasileiro que, embora inspirado pelas correntes europeias, buscava com afinco amalgamar essas influências ao riquíssimo regionalismo brasileiro. Um regionalismo impregnado de lirismo telúrico, simultaneamente alinhado com o esforço de construir uma identidade nacional.
Nos anos cinquenta, presenciamos a ascensão de uma arte mais racionalista, o concretismo, que ecoava o desenvolvimentismo do país daquela época. Emerge a nova classe média urbana, fruto do processo de industrialização, caracterizada por uma abordagem mais racional da vida cotidiana. Os artistas concretos, sobretudo os paulistas, denotavam um desejo de ruptura com as características mais regionalistas e afetivas do movimento modernista inicial, mas reforçando os vínculos com as experiências construtivistas europeias, que casavam bem com os anseios desenvolvimentistas nacionais.
Posteriormente, em março de 1959, ocorre a dissidência com o movimento concretista através da publicação do Manifesto Neoconcreto. Com isso, o grupo redescobre e hibridiza as características mais afetivas das expressões artísticas das décadas anteriores. Era uma arte que se voltava para questões sociais mais sensíveis, menos fria que o concretismo, enquanto adquire uma grande capacidade de circulação internacional e estabelece os alicerces da arte contemporânea brasileira.
Os anos setenta inicia-se por uma crise das suas vanguardas artísticas que refletia a condição sócio-política do momento. Essa nova geração de artistas sentiam o peso do golpe militar de 1964 endurecido pela promulgação do AI-5, ou Ato Institucional Número 5, um dos mais draconianos decretos emitidos pela ditadura militar brasileira. O AI-5 marca o início de um período de repressão intensa, censura e violação dos direitos civis e políticos no Brasil. Dentro desse cenário de agravamento do estado de exceção, surge uma nova geração de artistas interessados numa contra-arte, que caminhava a contrapelo às dinâmicas do mercado da arte. Afirmavam sua existência ao questionar e negar as instituições da arte, o sistema político e o sistema de circulação das imagens dentro de uma sociedade de consumo.
Essa sintética trajetória histórica objetiva situar o público português na palestra proferida, no início do ano de 2023, na FBAUP, pela professora da UERJ, Martha Telles, que agora é publicada na terceira edição da coleção Desajustados. Pois, é nesse contexto que Matha Telles tem o cuidado de posicionar sua análise nos acontecimentos sócio-políticos dos anos setenta, mas sem desconectá-la de um contexto histórico mais amplo. Isso tem especial importância dado que o entendimento do que ocorreu nesta década não pode ser destacado dos acontecimentos das décadas anteriores, posto que a referida década é um momento culminante dos processos ocorridos na arte e na sociedade brasileira ao longo do século XX.
Vale lembrar que essa nova geração de artistas de vanguarda, ou experimentais, que adentravam a década, se ressentiam de condições objetivas e subjetivas para atuar. Frederico de Morais escreve em seu livro A crise da hora atual, de 1976, que, na década de setenta, o próprio conceito de obra “estourava no bojo de uma crise do sistema de arte depois dos anos cinquenta”. O autor ainda afirma que o trajeto percorrido pelas vanguardas, quando considerado no contexto da realidade brasileira após 1964, revelava-se uma jornada “tragicamente melancólica, mas terrivelmente coerente”.
Todavia, a professora Telles avança de maneira notável em sua análise, indo além ao rever a concepção de circuito à luz do pós-conceitualismo de Peter Osborne. Sua contribuição transcende a mera apresentação da produção do período final de uma vanguarda histórica brasileira, destacando-se também por estabelecer uma nova chave de leitura atualizada no tempo presente de uma “realidade globalmente transnacional”.
À semelhança das aulas da professora Selma, a aula da professora Telles nos transporta a um cenário onde a complexidades subjacentes à criação artística, desvela-se em intrincadas questões sociais que ecoam muito além do universo artístico em si. Boa leitura.
Juliano Moraes
A série ‘Desajustados, Coleção de Textos Falados’, que o i2ADS edições publica, por iniciativa do IDENTIDADES_coletivo de ação/investigação, assumida numa forma informal e selvagem, apenas pretende espalhar na forma escrita alguma das oralidades oferecidas em eventos diversos que a FBAUP e o movimento intercultural IDENTIDADES acolheu e que assim sobrevivem ao esquecimento. Outros números surgirão.