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O primeiro texto da coleção de textos falados resulta da conversa proposta por Marina Didier, “Arte Identitária?” no ciclo Arquipélago, já em sua 11a Ilha.
Escrever a seção editorial de uma coleção de textos falados é em si um primeiro desajuste. A ideia de publicar textos falados, ou seja, textos que tenham origem na fala em distintas configurações (seja uma conversa, uma aula, uma conferência, um grito, um comentário, e coisas assim) quer dizer uma vontade de entender como opera o gesto da oralidade no exercício intelectual e sua interlocução escrita. Assim, o que se pode esperar deste editorial que não tem origem no que se articula pela fala audível, mas pela fala interior do silêncio?
Como a fala implica necessariamente escuta, encaramos esta proposição como um desafio coletivo. O que nos põe diante de mais um espaço de desajuste-contradição: o jogo das autorias e as condicionantes de poder presentes na transcrição, tradução, edição, e outras tantas formas de trair o acontecimento da fala e sua circunstância de coletividade. Assim como esse texto editorial, traidor de seus propósitos. Mas eu não peço desculpa. A tentativa e o desejo de tornar, de algum modo, justo este processo, elaboram a sua qualidade narrativa. Afinal, eu digo, tu dizes, ele (desde sempre) disse, ela diz, elu dirá, nós dizíamos, vós direis, eles hão de ouvir.
O primeiro texto desta coleção resulta da conversa proposta por Marina Didier, “Arte Identitária?” no ciclo Arquipélago (1) , já em sua 11ª Ilha. Ela diz, da sua tese de doutoramento publicada em 2021, o que ainda provoca, questiona, se mostra como pontas soltas destes diálogos tecidos e transforma-se em (re)investigação; conta do seu estado e sentimento diante desta partilha; conversa com as interlocutoras e interlocutores de agora junto às autoras e artistas de outrora; retorna aos seus processos, tendo escutado a si própria e às trocas com outras falas, oferecendo este que inaugura uma pretensa coleção de textos falados. A fala da fala com Marina, com mulheres artistas do Recife, com o grupo de investigadoras presentes na ilha, com autoras.
Por fim, mas para início desta conversa, é de se pensar como a investigação, o exercício do pensamento e da ação, ocorre nos interstícios da fala: estamos sempre falando sobre o que já foi falado, o que muito se fala e o que já não, o que ouvimos falar, o que falta ser falado. O que falta falar, fazer e voltar a falar. É desse tipo de contaminação pelas bocas e ouvidos, como uma epistemologia bacteriana (2), que sobrevive uma pesquisa. Mas também, e antes-de-tudo, do que sobrevive uma experiência.
O discurso vivo, mutante, é um feitio da fala, sobretudo da fala que se sente à vontade para contar. Por essa perspectiva, a escrita seria seu desajuste ou sua traição fundadora, que oferece à fala outro tipo de existência, outra chance no maquinário da memória. Aqui insistimos em textos falados como oxímoros, existindo graças ao ou apesar de seu paradoxo, buscando leitoras também desajustadas (porque falantes).
Luana Andrade
(1) Ciclo de conversas abertas promovidas no âmbito do ID_CAI (Coletivo de Ação/Investigação)/i2ADS (Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade). A Ilha #11, que resulta nesta publicação, pode ser acessada em: https://youtu.be/n1rTAYWgvIM
(2) Refiro-me à proposição performática “Bactéria” de Flávia Pinheiro, uma das artistas participantes da investigação que resulta na tese de Marina Didier. Acessado em: https://cargocollective.com/flaviapinheiro/Bacteria
A série ‘Desajustados, Coleção de Textos Falados’, que o i2ADS edições publica, por iniciativa do IDENTIDADES_coletivo de ação/investigação, assumida numa forma informal e selvagem, apenas pretende espalhar na forma escrita alguma das oralidades oferecidas em eventos diversos que a FBAUP e o movimento intercultural IDENTIDADES acolheu e que assim sobrevivem ao esquecimento. Outros números surgirão.